Nietzsche não tinha razão quando dizia que nos tínhamos de desligar do velho e criarmos os nossos próprios valores. Afinal um vaso não pode guardar nada se primeiro não contiver algo.
Os velhos, os velhos de facto, e não os rebanhos, os autores, os que criaram virtudes, foram também eles deuses e subindo acima das suas estórias podemos nós mesmos nos tornar deuses e, assim sendo, a divindade, ou melhor, o Além-Homem, é esse: aprendermos com eles e suplantá-los, com a humildade do tempo e a arrogância natural e a dureza indiferente das rochas. Não basta ser contemplativo. Contemplação é diferente de paciência. Se calhar convém ser mais do que rocha, talvez também importe ser vento, o qual indiferente e paciente na sua natureza de vento se agita. Paciência é estar, não é ser passivo, não é o simplesmente entregar-se e aceitar, mas em contraposição estar agitando-se, como só no silêncio ele consegue se agitar. É falar com os sentidos, com a ação. Não que as palavras sejam supérfluas mas apenas uma parte da expressão da própria brisa ou do temporal, que ora acaricia, ora tormenta, mas não se afasta ou se deixa fugir do aborrecimento, mas fica.
O vento mesmo quando está calado se percebe, pelo agitar dos ramos, pelo frio que de repente ondula na pele. Posso eu dizer ao vento “sopra” ou quando ele sopra dizer “deixa de soprar”? Assim é a vontade. E, se de facto queremos ser como o vento, livres, independentes, indiferentes, temos de permitir aos outros ventos o seu vento. A vontade tem sempre prioridade, seja no vale ou no cume, o vento faz-se proclamar. E se te permites ao vento, teu e não só, não digas a ele o que tem de fazer. Pega antes em ti e procura o teu próprio caminho, o teu próprio vento, a tua encosta, as tuas árvores e descansa na tua rocha.
Não obstante, se primeiro temos de ser rocha e depois vento, também importa sermos barco e, como ele, deixarmos o porto e irmos ao mar, vasto e profundo, e sermos, nem que por um pouco, a solidão. Não é navegar rumo ao abandono – ou seja, à vergonha perante a opinião, ou melhor, o delito dos outros, pois só se é abandonado quando se está em função de alguém – mas fazer cruzeiro à vastidão da nossa vontade, visto que, será precisamente na solidão que se treinará a presença e a coragem na ausência. Ao navegar, entre a profundidade do céu e do mar, desafiando doravante o horizonte, é que, quiçá, se possa tornar nítida a pureza da vontade. E que pureza é essa? É a indiferença da rocha, a força do vento e a incerteza do barco que, por si, rasga o mar.
Todos esses falam da natureza da vontade. Um riso sobre a própria insuficiência, em vez de ressentimento ou de medo face a ela.
A vontade é em si uma força de expressão contra a pulsão de morte de Freud, e uma intensa manifestação do gosto como intuiu Nietzsche.
A vontade é também o gatilho da responsabilidade. Não se pode culpar a natureza pela sua natureza, mas a vontade, essa não é só criadora, como também é juiz. A vontade não é moral mas uma força que expressa a luta do indivíduo por dar raiz e sustento à sua narrativa. Talvez a vontade seja uma escritora.
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FonteFotografia / Ar