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Quinta-feira - 15 Maio 2025

EXCLUSIVO: “A arte contemporânea sofre de uma grande falta de originalidade”

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Pintura de Nelson Ferreira

Há muito que se fala na crise de identidade da arte – não é novidade. Conversámos com Nelson Ferreira, artista plástico português que trabalha entre Londres e Portugal, onde criou duas academias de arte, uma no Porto e outra em Lisboa. Leciona pintura clássica em diversos países, aprendendo com os melhores. Para ele, a arte contemporânea está a cair no caos e na desordem, sem trazer algo novo, limitando-se a “reinventar a roda”. Nas suas palavras, a arte contemporânea “já não surpreende há muito tempo”.

Imagem: O Desterrado e Seus Pensamentos (Série Veludo Negro), feito para o Museu Nacional Soares dos Reis, 2022.

Na opinião do artista plástico, apenas uma arte sobreviveu e permanece pujante: a arte do marketing, que atingiu agora o clímax máximo em toda a história da humanidade. “Infelizmente, as artes plásticas são agora completamente ditadas pelo marketing. Já lá vai o tempo em que era a mestria a determinar a carreira de um artista.” Ele reconhece que o marketing sempre existiu, mas, no passado — há 100, 200 ou 300 anos —, quem não soubesse pintar “nunca podia fingir que era artista, e ponto final.”

Agora é só o marketing. Podemos ter pessoas que nunca pintaram ou fizeram absolutamente nada e, de repente, tornam-se os artistas mais valorizados. E há muitos casos. “Não vou dizer nomes, mas não é só um, nem dois, nem vinte, nem cem, nem mesmo mil!” É algo muito frequente e acontece a nível mundial. “Estamos a atravessar uma grande crise.” As artes perderam a importância que tinham para a sociedade. “É uma pena, porque isso é sintoma de uma civilização moribunda. Afinal, no futuro, só a arte permanecerá como testemunho deste presente.”

Ou seja, daqui a 500 anos, não terá qualquer importância quem foi um político deste tempo. O testemunho que as obras de arte desta civilização deixarão para a posteridade parece-lhe um reflexo pobre. Acredita que será visto como um período de caos, onde tudo vale e prevalece o “salve-se quem puder”. É também um tempo de atomização total: “Já não temos movimentos de muitos artistas unidos, como acontecia no passado. Não temos nada disso. Hoje em dia, cada um pinta sozinho, no seu canto. Talvez isso mude um dia, mas não me parece que seja no nosso tempo.”

Há, no entanto, um retorno ao clássico. As novas gerações querem aprender a desenhar e a pintar de forma técnica e rigorosa. Está a surgir um novo interesse no mercado pelas técnicas clássicas. Com este retorno, é natural que a maré comece a mudar, porque uma das características do clássico é que o artista precisa de aprender a “ver para além de si mesmo.”

A grande diferença em relação à arte contemporânea é que esta está centrada no “eu”: no “meu” estilo, nas “minhas” pinturas, na “minha” visão do mundo. Tornou-se, assim, numa arte mais egocêntrica. Já na arte clássica, o artista olha para fora de si mesmo, sendo essencialmente caracterizada pela observação da realidade, pelo estudo das grandes narrativas, das mitologias, etc. É uma arte que nos obriga a sair de nós mesmos.

Isto implica a capacidade de analisar o mundo de forma mais imparcial. Embora não seja inteiramente objetiva — pois também há subjetividade —, há um grande foco na técnica objetiva. “Penso que, com o retorno ao clássico, o que temos hoje é um divórcio total entre o público e os museus de arte”, reflete o artista, chamando a atenção para esta desconexão.

Há uma falta de cultura de visitar museus em Portugal: “As pessoas não frequentam museus, e quando o fazem, é geralmente porque estão a passear noutra cidade.” São sobretudo os estrangeiros que costumam visitar os museus. Em Lisboa ou no Porto, os portugueses ainda visitam com alguma regularidade, mas mesmo assim não muito. “Estamos a assistir à transformação dos museus numa prática essencialmente turística.”


“A arte contemporânea sofre de uma grande falta de originalidade”

É um facto universal e abrangente que, em todo o mundo, muita coisa se resume a copiar. O que a maioria das pessoas não sabe é que tudo isso já foi feito no século XIX.

Naquela época, existiu um grupo de artistas chamado Os Incoerentes. Eram franceses, baseados em Paris nos anos 1880, e já realizavam exposições absolutamente vanguardistas e radicais. Eles pintavam figuras abstratas 30 anos antes de Kandinsky ou Malevich.

Não foram Kandinsky nem Malevich que inventaram a arte moderna. Os Incoerentes já haviam explorado essas ideias antes, incluindo a criação de um quadro totalmente preto, exatamente como Malevich faria décadas depois. Este quadro era de Paul Bilhaud, de 1882. Antes dele, Robert Fludd tinha feito algo semelhante, em 1617. No entanto, continuamos a ensinar nas aulas de história da arte que foi Malevich quem fez isso pela primeira vez. No século XIX, Os Incoerentes já faziam performances, objetos encontrados (objet trouvé), e muitas outras coisas e que hoje se consideram inovadoras. Por exemplo, pegar num objeto comum da rua, colocá-lo numa galeria e declarar que é uma obra de arte.

O caso mais famoso desse conceito é o urinol de Marcel Duchamp, em que ele apresentou um urinol como arte numa galeria, em 1917. Mas Os Incoerentes já tinham feito algo semelhante mais de três décadas antes. Eles é que foram verdadeiramente revolucionários, surpreenderam o público com essas ideias inéditas e originais. A partir daí, quase tudo o que temos é a “cópia da cópia da cópia”. Ainda estamos a pôr urinóis em galerias e a achar que isso é novo.

“Não é vanguardista. E atenção: eu acredito que a arte pode chocar e, por vezes, deve cumprir esse papel de provocar choque. Contudo, o que sinto na maioria das exposições de arte contemporânea é que saio de lá esgotado, às vezes até com dores de cabeça ou enxaquecas. Sou muito sensível à linguagem das formas, e frequentemente percebo uma grande toxicidade na arte contemporânea. Esta é uma das minhas muitas críticas ao que é selecionado para ser mostrado nos maiores museus de arte contemporânea.”


A arte urbana

A arte urbana é um movimento interessante, afirma Nelson Ferreira. “Não tenho uma opinião definida porque já vi de tudo: desde coisas extraordinárias até vandalismo puro.”

Ele destaca que já testemunhou intervenções que transformaram por completo a dinâmica de uma cidade. “Fachadas de prédios em bairros absolutamente hediondos tornaram-se autênticas galerias de arte a céu aberto graças a intervenções de qualidade.” No entanto, sente que essas intervenções de alto nível ainda são raras.

Nelson lembra-se de uma época em que Lisboa era muito promissora na qualidade da arte urbana. Contudo, considera que a qualidade tem vindo a decair “horrivelmente”. “Vejo grafitis cada vez piores e pinturas murais cada vez mais toscas.”

Recorda também que, há cerca de dez anos, a arte urbana em Lisboa atingiu níveis notáveis, com obras memoráveis que ficaram gravadas na sua mente, embora muitas já tenham desaparecido. “A arte urbana tem essa característica transitória: não é permanente. É repintada, ou os muros são demolidos, e a obra desaparece.”

Ainda assim, Nelson considera a arte urbana fundamental: “Já vi coisas absolutamente fenomenais. Acho importante porque traz para as ruas o contacto do público com o trabalho de alguns artistas, obras que nunca seriam vistas se estivessem apenas em galerias ou museus.”


Uma mensagem aos governantes sobre o estado da arte em Portugal

O artista plástico admite não ser administrador nem saber como gerir os fundos da nação ou distribuí-los a nível nacional. Mas uma coisa ele afirma com convicção: “Há uma grande incúria perante a cultura. É chocante a falta de apoios à cultura em Portugal, é terceiro-mundista.”

Desabafa ainda que o público também não demonstra interesse pela cultura. “As pessoas não se importam com estas questões. Mas qualquer cantor de música menos elaborada ou até pimba recebe dezenas ou centenas de vezes mais do que músicos sérios.”

Ele sente – e sublinha que é uma sensação – que há um excesso de investimento em poucos artistas, quando os recursos poderiam ser distribuídos de forma mais equilibrada. Dá o exemplo de David Hockney:

“Há uns tempos, o Hockney entrou em conflito com a Tate Modern, em Londres. Quando ele era mais jovem, nos anos 60, tentou doar algumas pinturas à Tate, mas foram recusadas. Mais tarde, essas pinturas foram vendidas a agentes e galeristas, que por sua vez as venderam a clientes. Os preços dispararam ao longo dos anos, mas Hockney nunca viu um cêntimo desse dinheiro. Toda a valorização aconteceu em circuitos independentes do artista. Recentemente, a Tate tentou comprar essas pinturas por vários milhões de libras – as mesmas obras de arte que tinha recusado décadas antes.

Hockney escreveu uma carta aberta aos jornais britânicos criticando esta política cultural. Ele defendia que, em vez de gastar milhões em obras de artistas já famosos, esse dinheiro poderia ser usado para encomendar centenas de obras a artistas emergentes.

“Concordo inteiramente com esta visão. ‘Se, passados 10 ou 20 anos, algum desses artistas se tornasse famoso, o investimento já teria valido a pena, e, no processo, teriam sido apoiados centenas de artistas em vez de apenas um já consagrado. Acho que a política cultural sofre de miopia a longo prazo. Não estamos a criar coleções nacionais de artistas jovens que estão agora a emergir. Por exemplo, as faculdades de Belas-Artes poderiam receber apoio através de um convite aberto: o Estado poderia comprar uma obra de cada aluno que terminasse o mestrado ou doutoramento em áreas como pintura, seguindo regras simples, como o uso de um formato máximo de A2. Isso permitiria começar a arquivar as coleções do futuro. Porque, daqui a 50 ou 100 anos, não teremos obras dos artistas que viveram hoje. O Estado não está a pensar no futuro.”

Algo que admiro no estrangeiro é a visão de longo prazo. Em países como França, Itália e Espanha, os museus colecionaram e preservaram obras de vários artistas ao longo dos séculos. Isso contrasta com Portugal, onde as obras frequentemente se perdem, são facilmente desbaratadas e acabam por não ser representativas.

“Gostaria de ver os nossos políticos a pensar no futuro, a 10 ou 20 anos. Começar agora a investir em artistas jovens, que estão no início da carreira. Os ricos e famosos já não precisam desse apoio.”

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