Uma glosa em tempos de comentadores de bancada
Vão buscar as pipocas. Isto não é televisão. Isto também não é cinema. Mas tudo isto dá para comer pipocas.
Quote de inspiração
“Isto não é televisão, isto é cinema.”
– Gonçalo Sousa, num vídeo de comentário político
Foi com esta frase que me apanhou, ou melhor, foi com esta frase que dei por mim, do outro lado do ecrã, a sorrir com um certo desconcerto. “Isto não é televisão, isto é cinema”, disse o Gonçalo Sousa, rindo-se enquanto comentava com gosto (e alguma ferocidade em tom manso) um debate tenso entre figuras do Partido Socialista. A frase ficou-me. Porque é boa, porque é provocadora, e porque, sem querer, define o tempo em que vivemos: um tempo em que o comentário deixou de ser nota de rodapé e passou a ser espetáculo principal. E foi aí que nasceu esta glosa de hoje, o comentário do comentador, num tempo em que todos temos bancada e todos, de alguma forma, jogamos.
Talvez seja isso mesmo que esta crónica é: uma matrioshka de opiniões. O Gonçalo comenta o debate, eu comento o Gonçalo, e não duvido que alguém virá comentar este meu comentário. E assim se empilham camadas de análise, umas mais cuidadas, outras mais viscerais, num jogo de reflexos onde cada voz reflete e desafia a anterior. Pode parecer caos, mas também é sinal de vitalidade democrática: já ninguém está condenado ao silêncio.
Não conhecia bem o Gonçalo, e continuo a não saber onde o colocar no mapa político. Sei que o vi chegar ao meu feed como chegam estes novos protagonistas da esfera pública: pelas sugestões do algoritmo, empurrado pelos meus próprios cliques em conteúdos que tento ouvir, de todas as tendências, para poder pensar por mim. E nesse esforço, encontrei nele algo que respeito, não pela concordância, que não há na sua maioria, mas pela tentativa de fazer um trabalho cuidado, estruturado, atento ao detalhe. Há cortes, há montagem, há humor e há intenção. E num tempo em que tanto se fala com tanto vazio, a intenção conta.
O episódio em questão girava em torno de um confronto entre Ascenso Simões e Miguel Prata Roque, numa edição da SIC Notícias. Duas figuras da velha guarda socialista a debaterem com pouca contenção e muito ego. E, no meio desse teatro, o que me ficou foi o tom. Aquele tom autoritário, interrompido apenas pelo desejo de vencer o outro pela palavra , ou pelo grito. Confesso que eu própria falo alto demais porque foi e se a a voz que Deus me deu e por isso foco mais no que se diz e no tom ( intenção) l, do que no volume com que as coisas são ditas. A forma como Ascenso se impôs não foi apenas politicamente agressiva. Foi simbólica de uma forma de estar que já não serve. “Quem manda aqui sou eu. Quem sabe sou eu.” Mas será?
E se fosse uma mulher a usar aquele mesmo tom? Se interrompesse, se falasse com volume, se se impusesse com arrogância? Seria chamada de histérica. De descontrolada. De imprópria. Mas os homens de barba branca ainda têm o privilégio da autoridade. A eles tudo se admite. E é nesta desigualdade subtil , mas permanente, que continua a reproduzir-se a velha política, mesmo quando já ninguém tem paciência para ela.
Por isso vejo estes novos comentadores. Não por devoção, mas por observação. Porque quero perceber por onde se mexe a maré. E porque sei que, mais cedo ou mais tarde, o comentário vai ultrapassar a política. Vai moldá-la. Já o está a fazer. Gonçalo não é o único, nem será o último. E se, por agora, ainda há quem o tente fazer com algum rigor, não nos iludamos: o palco está montado para os que virão com menos ética, menos consciência e mais vontade de manipular.
Esta crónica é, por isso, uma espécie de glosa, como se fazia na poesia e na lei antiga: pegar numa frase e, a partir dela, desenrolar pensamento. Comentar o comentário. Observar o observador. Não para corrigir, mas para ampliar. Para lançar perguntas. Para abrir janelas.
E enquanto isso, sim. podemos ir buscar as pipocas. Porque isto não é televisão. Isto também não é cinema. Mas tudo isto é, sem dúvida, matéria que dá que pensar. E, às vezes, até dá para rir. O tal elixir que é bem preciso em tempos de tragédias.
Que este texto vos inspire ou vos provoque. Não procure concordância, mas romper as correntes da apatia
Por Marisa Monteiro Borsboom
