À direita a Cônsul-Geral de Angola no Porto Dulce Gomes, e à segunda à esquerda o Vice-Consul de Angola.
O dia prometia, no termómetro já marcavam 32º e eram apenas 11 horas da manhã. O palco das festividades foi no Parque da Ponte, nos dias 3 e 4 de agosto em Braga. O dia prometia, as bancas começavam a tomar forma com os
produtos variados, desde a gastronomia, pintura, escultura e vestuário com tecidos multicoloridos, bem ao jeito de África.
O Imbondeiro, árvore mais famosa de Angola, cujas raízes atingem alguns quilómetros, não estavam presentes, mas as árvores
frondosas do parque proporcionava-nos a sombra para que tudo pudesse correr pelo melhor. Acompanhámos a Cônsul-Geral, Dulce Gomes, e o Vice-Cônsul Angolano, por todos os expositores, pois a ideia era
reunir as várias comunidades africanas e não só, presentes em Portugal, num momento de partilha de saberes e sabores.
Visitámos uma a uma todas as bancas onde se expunha e vendia: Gastronomia, pintura, escultura, tecidos e roupas típicas de Angola, onde teve teve lugar um desfile de moda, nem o Vice-Cônsul escapou da passadeira vermelha, com uma camisa típica de Angola com cores vibrantes e cheias de vida. O Amarelo do sol e o avermelhado do chão, que são o cartão de visita do país.
Nos “petiscos” havia Queijada, Pé de de Moleque, Micate e a famosa Muamba de Galinha Angolana, que é de chupar os dedos. Tudo tinha muito bom aspeto e vontade de meter o dente à medida que o tempo ia passando, pois já se aproximava a hora do almoço.
Os ritmos quentes não podiam faltar, pois onde há África há música e sempre um pezinho de dança. Sentia-se o ambiente Africano por todo o lado, assim como de outras comunidades vindas da América Latina. Havia comida e bebida à fartazana, pois africano que é africano não deixa ninguém sem comer e beber. À medida que íamos descendo permitia-nos ver a entreajuda das diferentes comunidades, e cada uma ao seu jeito vendia o seu “peixe”.
Os latino-americanos com o seu “salero”, não se ficavam atrás e mostravam os seus dotes de dança, onde foi apresentado um workshop de Salsa da Associação Huellatina.
Durante os dois dias foram marcados por várias atividades, Desfile de moda, dança, música ao vivo, declamação de um poema do Moçambicano Luís Bernardo Honwana “As mãos dos pretos”.
Foi o primeiro encontro, mas para o ano “vai ser melhor”, disse a Cônsul-Geral, Dulce Gomes. “Há sempre coisas a melhorar e só a experiência permite aperfeiçoamento, destacando também para que os angolanos sejam mais arrojados e introduzam mais cultura, mais literatura.
Para ser a primeira vez, “as expectativas até que estão foram alcançadas”, como nos referiu a Cônsul-Geral. “Até que não estava mal, apenas alguns apontamentos, mas é natural.”
Sábado e Domingo, foram dois dias em cheio. Toda a gente comeu (uns pela primeira vez) e bebeu a famosa Cuca, a cerveja mais consumida em Angola, uma herança portuguesa.
A Cônsul-Geral, Dulce Gomes parecia contente com o que via, mas a sua visão de diplomata falava sempre mais alto. Pois a sua experiência “obriga-a” a querer sempre mais do seu povo.
Trocam-se cartões e contactos, numa tentativa de aproximar o consulado junto dos seus conterrâneos, e assim perceber o que se pode fazer pela comunidade Angolana. “Mais criatividade” e “estamos todos juntos” são as palavras da Cônsul.
O ritmo da música continuava à medida que íamos de banca em banca. A pintura e a moda estavam de mão dadas, pois só elas permitem a magia no resultado final. Houve workshops de dança latina da Associação Huellatina e danças africanas. As artes também faziam parte do cardápio cultural, desde a pintura à escultura de estátuas tradicionais às mais contemporâneas, extensões para fazer os penteados mais arrojados.
Foram dois dias de muita festa, confraternização, partilha e humanismo. Deixamos o poema “As mãos dos pretos” de Luís Bernardo Honwana, que reflete bem o que ali se passou nos dois dias de “interculturalidade”.
“Uma história sobre a igualdade dos homens, para além das suas cores.
Já não sei a que propósito é que isto vinha, mas o senhor Professor disse um dia que as palmas das mãos dos pretos são mais claras do que o resto do corpo porque ainda há poucos séculos os avós deles andavam com elas apoiadas ao chão, como os bichos do mato, sem as exporem ao sol, que lhes ia escurecendo o resto do corpo. Lembrei-me disso quando o Senhor padre, depois de dizer na catequese que nós não prestávamos mesmo para nada e que até os pretos eram melhores que nós, voltou a falar nisso de as mãos serem mais claras, dizendo que isso era assim porque eles andavam com elas às escondidas, andavam sempre de mãos postas, a rezar.
Eu achei um piadão tal a essa coisa de as mãos dos pretos serem mais claras que agora é ver-me não largar seja quem for enquanto não me disser porque é que eles têm as mãos assim tão claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-lhes as mãos assim mais claras para não sujarem a comida que fazem para os seus patrões ou qualquer outra coisa que lhes mandem fazer e que não deve ficar senão limpa.
O Antunes da Coca-Cola, que só aparece na vila de vez em quando, quando as Coca-Colas das cantinas já tenham sido vendidas, disse que o que me tinham contado era aldrabice. Claro que não sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era. Depois de lhe dizer que sim, que era aldrabice, ele contou então o que sabia desta coisa das mãos dos pretos. Assim:
– Antigamente, há muitos anos, Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Virgem Maria, São Pedro, muitos outros santos, todos os anjos que nessa altura estavam no céu e algumas pessoas que tinham morrido e ido para o céu fizeram uma reunião e resolveram fazer pretos. Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram em moldes usados de cozer o barro das criaturas, levaram-nas para os fornos celestes; como tinham pressa e não houvesse lugar nenhum ao pé do brasido, penduraram-nas nas chaminés. Fumo, fumo, fumo e aí os tens escurinhos como carvões. E tu agora queres saber porque é que as mãos deles ficaram brancas? Pois então se eles tiveram de se agarrar enquanto o barro deles cozia?!
Depois de contar isto o Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam à minha volta desataram a rir, todos satisfeitos.
Nesse mesmo dia, o Senhor Frias chamou-me, depois de o Senhor Antunes se ter ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para ali a ouvir de boca aberta era uma grandessíssima pêta. Coisa certa e certinha sobre isso das mãos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens e mandava-os tomar banhai num lago do céu. Depois do banho as pessoas estavam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madrugada e a essa hora a água do lago estivesse muito fria, só tinham molhado as palmas das mãos e dos pés, antes de se vestirem e virem para o mundo.
Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que os pretos têm as mãos assim mais claras por viverem encurvados, sempre a apanhar o algodão branco da Virgínia e de mais não sei onde. Já se vê que Dona Estefânia não concordou quando eu lhe disse isso. Para ela é só por as mãos deles desbotarem à força de tão lavadas.
Bem, eu não sei o que vá pensar disso tudo, mas a verdade é que, ainda que calosas e gretadas, as mãos dum preto são mais claras que todo o resto dele. Essa é que é essa!
A minha mãe é a única que deve ter razão sobre essa questão das mãos dos pretos serem mais claras do que o resto do corpo. No outro dia em que falámos nisso, eu e ela, estava-lhe eu ainda a contar o que já sabia dessa questão e ela já estava farta de rir. O que achei esquisito foi que ela não me dissesse logo o que pensava disso tudo, quando eu quis saber, e só tivesse respondido depois de se fartar de ver que eu não me cansava de insistir sobre a coisa, e esmo até chorar, agarrada à barriga como quem não pode mais de tanto rir. O que ela disse foi mais sou menos isto:
– Deus fez os pretos porque tinha de os haver. Tinha de os haver, meu filho, Ele pensou que realmente tinha de os haver…. Depois arrependeu-se de os ter feito porque os outros homens se riam deles e levavam-nos para casa deles para os pôr a servir de escravos ou pouco mais. Mas como Ele já não os pudesse fazer ficar todos brancos, porque os que já se tinham habituados a vê-los pretos reclamariam, fez com que as palmas das mãos deles ficassem exactamente como as palmas das mãos dos outros homens. E sabes porque é que foi? Claro que não sabes e não admira porque muitos e muitos não sabem. Pois olha: foi para mostrar que o que os homens fazem é apenas obra dos homens…Que o que os homens fazem é efeito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tivessem juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos homens que dão graças a Deus por não serem pretos.
Depois de dizer isso tudo, a minha mãe beijou-me as mãos.
Quando fui para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse batido.”