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Domingo - 19 Maio 2024

EXCLUSIVO: Ismail Kadaré – Viagem ao país das lendas e do nevoeiro

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Ismail Kadaré é, com certeza, o maior escritor de língua albanesa e um dos maiores, mais reputados e mais talentosos escritores europeus vivos. A sua extensa obra está traduzida em mais de quarenta línguas, incluindo o português.

A entrevista de Ismail Kadaré aconteceu por altura da 25ª Feira do Livro de Tirana (de 16 a 20 de novembro de 2022) com a preciosa ajuda e colaboração de Bujar Hudhri, fundador e diretor da Onufri, a maior editora de língua albanesa e principal editora da obra de Ismail Kadaré.

Fui nessa altura portador da tradução francesa do livro de Saramago, “Viagem a Portugal” que a Fundação José Saramago fez questão de oferecer com uma dedicatória especial para Kadaré. O talento do escritor albanês sempre foi apreciado por Pilar del Rio e o próprio Saramago chegou a propor o seu nome para a atribuição do Prémio Nobel da Literatura. A mensagem pessoal de Pilar del Rio transmitida oralmente a Kadaré deixou-o emocionado e ambos os gestos foram o melhor “quebra-gelo” para uma conversa com um personagem tido por enigmático e algo impenetrável.

Entrados que somos na sua esfera pessoal – essa sim, algo misteriosa e lendária, como a sua escrita – percebemos a sua timidez, circunspeção e algumas reticências aparentes. É afinal um perfil construído ao longo dos quase setenta anos de vida literária numa escrita sob diversas formas – jornalismo, poesia, ensaio, romance – mas com uma exigência constante: militante sem ser panfletária, interventiva sem se esgotar per se na frente da luta política, demolidora e inteligente na desconstrução de um regime severo e ditatorial.

Natural de Gjirokastër, sul da Albânia, onde nasceu em 1936, Ismail Kadaré é também conterrâneo de Enver Hoxha (1908-1985), líder e ditador albanês. Como que por ironia, também a sua obra convive com o que poderia pensar-se ser a razão mesma da sua impossibilidade, o regime ditatorial comunista albanês.

De facto, Kadaré ficou a maior parte da sua vida, bem como da sua carreira como escritor, no olho do furacão estalinista do ditador Enver Hoxha, tendo-se apenas exilado quase no final desse período de ditadura, quando sentiu que a sua vida e a dos seus familiares corria maior perigo. Sempre, durante esse tempo, encarnou e ilustrou o papel mais elevado do escritor, com a escrita como única arma, intervindo na história do seu país, do seu povo e da humanidade, para se fazer ouvir sob o peso da opressão. O que no início era só um murmúrio, transmutou-se em voz distinta e clara – para acabar num grito de libertação.

Ismail Kadaré acredita que a literatura, na mão do escritor, é uma arma bem mais poderosa do que aquela de que dispõe o ditador. A obra do escritor é perene, eterna; a arma do ditador morre com ele.

Ismail Kadaré é de poucas palavras. Como acabou por reconhecer na nossa conversa, a sua obra é feita de palavras, muitas, e deixou-o com palavras poucas. Como se a missão, o dever para com a vida e a História do seu tempo, do seu povo, do seu país estivesse cumprida e ele ficasse inscrito na História. No fundo, na nossa História.

No decorrer da conversa foram evocados alguns dos temas principais: as lendas dos Balcãs e da Albânia, a neblina que pesou sob o povo e sob o território albanês durante o período da ditadura e o talento (a “arte”, segundo Kadaré) do escritor para superar o drama ou o dilema do início da escrita de um novo romance.

A tudo Ismail Kadaré respondeu, a nada se furtando, mesmo que só com frases curtas.

No início de um dos seus livros “La légende des légendes” (ed. Flammarion, 1995), Kadaré escreve: “No início dos anos 70, durante uma receção em Paris, o embaixador da Albânia comunista teve um breve encontro com Miguel Astúrias, nessa altura embaixador da Guatemala em França. No início, a conversa podia parecer puramente formal, principalmente tendo em conta que os dois pequenos países não tinham nem pensavam ter qualquer tipo de relações, incluindo as relações diplomáticas. Miguel Astúrias, embaixador, mas também escritor consagrado e Prémio Nobel da Literatura (1967) certamente achava aquele tipo de encontros fastidiosos e por isso interrogou o embaixador albanês: “Ah, a Albânia, já ouvi falar do seu país. Tenho a curiosidade de saber se no seu país há muito nevoeiro. E não lhe coloco esta questão por mero acaso. É que, se há nevoeiro, também devem existir muitas lendas.” Miguel Astúrias morreu pouco tempo depois, não permitindo a Ismail Kadaré, numa das suas viagens a França, aprofundar e explorar o sentido desta curta troca de palavras.

Ismail Kadaré confirma que a Albânia e os Balcãs sempre viveram no interior deste nevoeiro de lendas. E vivem ainda. Porque das lendas, sai sempre a verdade e esta é única e imortal, considera o escritor. Todavia, esta análise não pode ou não deve ter efeito redutor: a obra do escritor vai muito para além disso. Ismail Kadaré, através dos mais de 50 romances e ensaios, mostra como foi e é possível romancear sem, contudo, entrar forçosamente na literatura de ficção, dando aos factos a importância e o significado que só os factos têm ao espelhar a realidade dos Balcãs e da Albânia.

Aqui chegados, uma pergunta se impõe: por que razão o escritor não procurou o exílio, solução escolhida por grande parte dos dissidentes, nomeadamente os dissidentes oriundos de países socialistas no século XX? Este aspeto poderia levar-nos a cair na tentação de olhar para Ismail Kadaré como o “escritor do regime”, pactuante, conivente, enquanto este perfil lhe granjeou facilidades. Ora, Kadaré explicou claramente a sua opção, aliás corroborada por Helena Kadaré, sua esposa, noutro momento das nossas conversas durante a 25ª Feira do Livro de Tirana. O exílio do escritor, por incompatibilidade com o regime de Enver Hoxha e por impossibilidade de continuar a sua tarefa de escritor “engagé”, seria sempre uma solução de facilidade, apesar de colocar em situação extremamente crítica e até perigosa os membros da sua família que ficariam definitivamente rotulados de “inimigos e traidores do povo albanês”. Ainda segundo Helena Kadaré, seria oferecer um mártir ao ditador, o que nunca esteve nos objetivos, nem do escritor nem da família.

Assim sendo, havia que encontrar um “modus vivendi” que permitisse escrever para desconstruir o regime, para deixar para o futuro o registo do que significou viver sob o jugo do ditador e do seu regime. Ismail Kadaré teve fontes inesgotáveis – como repetidamente frisou durante a nossa conversa – para conseguir transmitir o seu pensamento e a sua energia de luta: as lendas balcânicas e a história da região e do país onde se encontra ancorada a presença, a extensão temporal e geográfica do Império Otomano.

É precisamente nestas duas fontes que o escritor “camufla” a sua visão das coisas. Se as lendas servem para justificar os atos e os factos que, em geral, compõem a trama dos seus romances (alguns deles com toque de autênticos romances policiais), já o Império Otomano serviu na perfeição para descrever (como numa versão tirada a papel químico) o regime de Enver Hoxha como se do regime do Sultão otomano se tratasse. O quadro temporal da narrativa deixou de ser relevante, pois o que realmente importava para Ismail Kadaré era denunciar o regime estalinista de Enver Hoxha por dentro, na sua ação real, verídica, quase quotidiana, concreta.

Ismail Kadaré é a consciência do que representa a literatura e escrita dos povos. Foi nessa função que subiu ao mais alto patamar, desfazendo paixões e oposições, em particular as de raiz étnica, chauvinista que, segundo o escritor, não correspondem – ou não deveriam corresponder, acrescenta – à mentalidade dos homens e mulheres da nossa era. Perante conflitos de que é contemporâneo, Kadaré espera que os povos que derem o primeiro passo na direção dos outros, na busca da paz e da resolução de conflitos, acabem por subir a um patamar superior. Foi assim no caso do conflito do Kosovo; é assim nas desavenças entre pessoas em geral.

A “arte” de Kadaré recorre a metáforas e figuras de estilo literário, usa a História e as lendas dos Balcãs. Mas, mais importante ainda, fá-lo, com uma mestria e um talento que o distinguem dos escritores de romances históricos.

Contudo, foi necessário garantir o exercício literário longo de mais de sessenta anos e criar condições para publicar uma obra que, apesar dos vários artifícios de desconstrução, não escapava às garras da censura. Toda a obra de Ismail Kadaré foi sujeita a censura na Albânia.

Com contactos no exterior do país, era necessário fazer chegar a “porto seguro” o que vinha sendo produzido. Os originais corriam perigo e mantê-los em casa era, como confessou sua esposa, Helena Kadaré, como ter uma bomba com retardador. Era urgente enviar os escritos para fora. Começou então a atividade de “contrabando”. Os amigos de Kadaré (sobretudo franceses), que o visitavam com alguma regularidade, traziam de volta a França, nos fundos da sua bagagem, os originais dactilografados por Helena (Ismail apenas ditava ou escrevia à mão). Foi decidido, a certa altura, que os originais contrabandeados por esta via deveriam ser depositados num cofre-forte que apenas poderia ser aberto por um dos amigos (da editora Fayard, Paris), devidamente identificado no ato notarial, caso acontecesse “algo de súbito e anormal” ao escritor. Foi desta forma que começou a ser acumulada a obra literária de Ismail Kadaré no exterior da Albânia, não sem excluir outras fórmulas também expeditas, mas com menor recurso, como, por exemplo, atribuir a outros escritores famosos a autoria de alguns dos seus escritos.

Com tradução em mais de quarenta países, a obra de Ismail Kadaré é reconhecida, tendo recebido vários prémios: Prémio Mundial Cino del Duca (1992), Man Booker International Prize (2005), Prémio Príncipe das Astúrias (2009) e Prémio Jerusalém (2015). Ismail Kadaré continua a ser um constante candidato ao Prémio Nobel da Literatura, tendo sido nomeado por diversas vezes (proposto por José Saramago, como já se disse). É membro associado da Academia das Ciências Morais e Políticas de França, tendo recebido em maio de 2016, do Presidente francês François Hollande, a Comenda de Legião de Honra.

Questionado sobre o facto de ainda não ter sido laureado com o Prémio Nobel da Literatura, Ismail Kadaré diz não se sentir frustrado. Sabe que o facto de a comunicação social falar muito dele faz com que muitos leitores julguem que ele já recebeu o Prémio. Está consciente de fazer parte da “família dos que são propostos” e isso já é muito importante. Seria mesquinho da sua parte, pensa Ismail Kadaré, alimentar algum tipo de ressentimento por não ter recebido o Prémio Nobel. Contudo, acrescentou Helena Kadaré na nossa conversa à margem da Feira do Livro, todos os anos, no dia da deliberação do Comité Nobel, às 13 horas precisas, quando Ismail está no seu habitual local do café da manhã, o Restaurante Juvenilja Arena, em Tirana, (onde tivemos a nossa conversa) toda a imprensa albanesa se junta a Kadaré para saber se é dessa vez que vão festejar o maior acontecimento da literatura albanesa.

Ismail Kadaré não se considera um escritor de romances históricos.

Apesar de Ismail Kadaré se deixar guiar e inspirar pelos mitos e factos históricos, praticamente todos os seus romances assumem uma dimensão política.

Aqui será de destacar o papel que na sua obra desempenham conceitos que recolhe da tradição, nomeadamente a vendetta e a bessa – princípios de honra e de moral constantes do código consuetudinário Kanun que rege o período de tréguas entre acertos de contas num processo de vingança. Recorrendo a esses conceitos e a lendas de origem mais obscura e mais recuada, Ismail Kadaré é investido de chefe de fila de uma nova etapa da renascença albanesa, balcânica e europeia.

Estudioso de Ésquilo – pai da tragédia grega – mas também de Shakespeare, Kadaré explora todos os aspetos fundadores e essenciais à “bessa” que empresta à lei do sangue e ao dever da “vendetta” uma regulamentação minuciosa que faz lembrar o desenrolar da tragédia antiga. É este estudo que Kadaré desenvolve de forma apaixonante, mas rigorosa, no ensaio “Eschyle ou le grand perdant” (ed. Fayard, 1985).

Romances dos anos setenta até aos anos noventa – como “O General do Exército Morto”, “Os Tambores da Chuva”, “Abril despedaçado”, “Palácio dos Sonhos”, “A Pirâmide”, “O Acidente”, “As Frias Flores de Abril”, “Trois chants funèbres pour le Kosovo”, “Il a fallu ce deuil pour nous rencontrer”, “Le Concert”, “Le Pont aux Trois Arches”, “Le légende des légendes”, “Le Grand Hiver” são apenas algumas das peças-mestras da obra muito mais extensa e cheia de substância, de História, de desmantelamento de ideias impostas, de desconstrução de sistemas e regimes. São, resumindo Ismail Kadaré pelas suas próprias palavras, “a arte como arma poderosa do escritor”.

(Ismail Kadaré entrevistado por Joaquim Silva Rodrigues, Tirana, Albânia, 18 de novembro de 2022)

Joaquim Rodrigues
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