Estivemos em entrevista com Carla Paiva, Presidente da Plataforma Portuguesa das ONGD. Associação privada sem fins lucrativos que engloba 64 ONGD registadas junto do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Foi criada a 23 de março de 1985, pela mão de Eugénio Anacoreta Correia, então responsável do IDL – Instituto Amaro da Costa, à qual se juntaram outras 12 organizações, “que partilhavam a vontade de atuar na área da Cooperação para o Desenvolvimento, unidas por um objetivo comum que se mantém até hoje: colaborar por um mundo mais justo e solidário.” Sustenta a Presidente.

A criação da Plataforma trouxe à sociedade civil portuguesa uma estrutura dedicada à Cooperação para o Desenvolvimento, muito semelhante ao que existia noutros países europeus desde os anos 60, com o intuito de promover o diálogo entre entidades públicas e privadas, fortalecer a solidariedade e a colaboração entre Associadas, e coordenar programas e ações nesta área.
O seu nascimento coincidiu com um momento político crucial – o final das negociações para a adesão de Portugal à CEE -, o que viria a facilitar o relacionamento com as ONGD e Instituições Europeias, bem como o acesso a mecanismos de cofinanciamento. Simultaneamente, as primeiras décadas de atividade foram marcadas por grandes desafios políticos nos países prioritários para as Associadas, como a guerra civil em Moçambique e Angola, a instabilidade na Guiné-Bissau após o primeiro golpe de Estado e a luta pela independência de Timor-Leste.
A aprovação do Estatuto das ONGD, em 1994, e a sua revisão em 1998, marcaram um avanço decisivo no reconhecimento e na consolidação do papel destas organizações na Cooperação para o Desenvolvimento, Ação Humanitária e de Emergência e Educação para o Desenvolvimento em Portugal. Esta legislação veio clarificar a natureza e as áreas de atuação das ONGD, reforçar o seu direito à participação na definição de políticas públicas, e estabelecer mecanismos de apoio como o Mecenato da Cooperação. Ao prever a sua representação em instâncias consultivas, regular o registo e os deveres das direções e reconhecer formalmente as plataformas nacionais, o Estatuto distinguiu as ONGD das restantes organizações da sociedade civil, garantindo maior transparência e acesso a financiamentos, incluindo fundos europeus. A criação, em 2004, do Estatuto dos Agentes de Cooperação veio completar este quadro legal, que continua a ser essencial para assegurar a autonomia, o impacto e o reconhecimento das ONGD num contexto global em constante transformação.

Ao representar e apoiar as ONGD portuguesas em contextos nacionais e internacionais, a Plataforma Portuguesa das ONGD procura fortalecer a intervenção da sociedade civil nas áreas da Cooperação para o Desenvolvimento, da Ação Humanitária e de Emergência, e da Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global. Desta forma, reforça as capacidades das ONGD como agentes comprometidos com a solidariedade entre os povos e promove a construção de um mundo mais justo e equitativo.
A sua ação Internacional
O Desenvolvimento Internacional integra três áreas fundamentais – Cooperação para o Desenvolvimento, Ação Humanitária e de Emergência, e Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global – que constituem também os eixos centrais da atuação das ONGD portuguesas e da Plataforma Portuguesa das ONGD. Através destas áreas, promove-se a justiça global e o desenvolvimento sustentável, com base na advocacia política, na capacitação da sociedade civil, na comunicação para o desenvolvimento e no fortalecimento da coesão interna do setor.

No domínio da advocacia política, “acompanhamos os processos nacionais e internacionais relevantes e procuramos influenciar políticas públicas que contribuam para um mundo mais justo, solidário e sustentável. Produzimos conhecimento e assumimos posicionamentos sobre temas centrais para o setor, com o objetivo de dar visibilidade às prioridades e preocupações das ONGD junto dos decisores políticos. Promovemos ainda uma comunicação ativa e crítica, com o objetivo de aumentar a visibilidade do setor e aprofundar o conhecimento público sobre o desenvolvimento internacional.” Revela a Presidente.
Outro eixo central de intervenção é o da capacitação, com ações adaptadas às necessidades concretas das associadas da Plataforma, e aos desafios emergentes. Através de formações, workshops e programas de aprendizagem entre pares, contribuem para o reforço das competências das ONGD e de outros atores do desenvolvimento.
Em paralelo, fomentam a coesão interna entre as ONGD, dinamizando mecanismos de colaboração e estruturas internas de trabalho e partilha, como os Grupos de Trabalho (Aid Watch, Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global, Ética, e Recursos Humanos e Voluntariado), as Comunidades de Interesse (Administrativa-Financeira e Comunicação), um Grupo de Referência de Ação Humanitária e de Emergência, bem como Task Forces, Grupos Ad hoc ou Comissões sempre que se justifica e que é sinalizado pelas próprias organizações Associadas como uma necessidade. Todos são constituídos no seio da Plataforma, e incentivam a partilha de experiências e fortalecem a sustentabilidade organizacional do setor.
No que respeita ao setor das ONGD em geral, a Plataforma realiza ainda atividades de caráter bienal que promovem oportunidades de sinergia e interconhecimento, assim como de reflexão sobre temas relevantes. A Academia do Desenvolvimento é uma atividade que privilegia a partilha de conhecimento através de uma abordagem de capacitação entre pares, procurando envolver o setor público e privado lucrativo, assim como as universidades. Por outro lado, o International Development Summer Course, realizado em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian e o CEsA/ISEG, conta com o contributo de reconhecidos pensadores e profissionais do desenvolvimento, nacionais e internacionais. O objetivo é dar a conhecer as tendências e desafios do Desenvolvimento Internacional, capacitando os atores para a transformação, de forma a que estes façam parte da construção e desconstrução das políticas, estratégias, processos e ações futuras a nível nacional e internacional.

Tem desenvolvido um trabalho estreito de colaboração com outras Plataformas de ONG, designadamente dos PALOP, Brasil e Timor-Leste, tendo criado em 2019 uma rede informal de Plataformas Lusófonas de ONG que ainda hoje prossegue o seu propósito. Esta rede pretende contribuir para a melhoria das políticas públicas na área da Cooperação para o Desenvolvimento, assim como para o reforço do espaço cívico, “num momento em que a instrumentalização da Cooperação é cada vez mais a notória e os ataques às organizações da sociedade civil se multiplicam por todo o mundo. Esta rede foi criada porque se considerou essencial aprofundar a partilha de conhecimento entre as Plataformas e intensificar a capacitação e o estabelecimento de parcerias para advocacy, com base em áreas de atuação e objetivos comuns.” Menciona Carla Paiva.
A nível nacional, a Plataforma coopera também com outras redes de ONG de outras áreas setoriais, como a Juventude, os Direitos das Mulheres, o Desenvolvimento Local e Rural, e o Voluntariado. Esta colaboração decorre no seio do Fórum da Sociedade Civil para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), uma rede também de caráter informal que funciona desde 2014 e que pretende desenvolver uma intervenção de longa duração, coincidente com a vigência da Agenda 2030, funcionando e intervindo de forma flexível e potenciadora do conhecimento, expertise e interesse dos membros que o compõem. Os membros do Fórum têm promovido um diálogo intersetorial, “inclusivo e participativo que procura contribuir para encontrar respostas para os desafios globais e locais que enfrentamos”. Refere a Presidente.
Dada a importância do papel da Sociedade Civil na implementação da Agenda 2030, pelo seu conhecimento e proximidade ao terreno, pela sua visão apoiada na defesa dos direitos humanos e do bem-estar das populações, e pelo seu trabalho de influência política e promoção da consciencialização da opinião pública, tona-se ainda mais premente que as organizações se juntem para trabalhar de forma mais articulada e consequente.
O maior desafio
Os desafios que a Plataforma enfrenta não se podem dissociar das crises que assolam o mundo. “Verificamos com elevada preocupação o aumento das violações de direitos humanos e o atropelo aos valores democráticos, com uma sociedade civil defensora dos direitos fundamentais, das minorias ou do ambiente sob crescente pressão legal, política e financeira. Num cenário mundial marcado pela ascensão do populismo e do autoritarismo, enfrentamos o desafio de responder a ações que distorcem o debate político, através da desinformação, da mentira e do discurso de ódio que dominam a comunicação pública.” Salienta.
Este é um desafio exigente, que “nos convoca a encontrar formas cada vez mais eficazes de comunicar e sensibilizar a sociedade para a importância do trabalho desenvolvido e dos resultados alcançados nas áreas ligadas à cooperação para o desenvolvimento. Fazemo-lo num contexto em que o sistema internacional, apesar de continuar formalmente baseado em regras e no direito internacional, vê essas mesmas regras frequentemente ignoradas ou desrespeitadas por muitos atores. O seu uso instrumental ao serviço de interesses nacionais, com decisões unilaterais, enfraquece o multilateralismo, a cooperação internacional e a diplomacia.” Sustenta Carla Paiva.
Como organizações da sociedade civil, que contribuem para os equilíbrios de poder e para o escrutínio público, vive-se com preocupação a crise da democracia e os ataques aos direitos civis fundamentais, bem como aos princípios e valores que são tão caros às organizações. A Plataforma deve estar ao lado das organizações neste período desafiante, contribuindo para reforçar a sua capacidade de resposta a este contexto ameaçador, fortalecendo a sua resiliência e defendendo condições políticas e financeiras adequadas para que as ONGD possam continuar a intervir.
Trabalham no terreno ou fazem monitorização das outras ONG?
A Plataforma colabora com outras plataformas e redes de países parceiros da Cooperação Portuguesa, mas não intervém diretamente no terreno. Essa colaboração centra-se em ações de advocacy coordenadas junto de decisores políticos nacionais e internacionais, procurando sensibilizar para os desafios enfrentados pelas organizações locais, nomeadamente no que respeita às restrições ao espaço cívico. De forma coordenada e em parceria, procuram mobilizar apoio político e da sociedade para melhorar o contexto em que essas organizações operam a nível nacional, promovendo ações conjuntas de influência política e de comunicação externa, que apoiem as suas propostas e deem visibilidade às suas preocupações.
Enquanto rede colaborativa, a Plataforma não tem como missão monitorizar as práticas das organizações, mas sim apoiá-las no reforço das suas capacidades e na criação de um enquadramento político, legal, financeiro e social mais favorável à sua atuação. Através da implementação de um Código de Conduta interno, promove a melhoria das práticas e da conduta das organizações, com impacto na forma como desenvolvem as suas atividades e projetos de cooperação para o desenvolvimento e ação humanitária nos países parceiros.
A Plataforma representa 64 ONGD, apoiando-as através de um trabalho contínuo de articulação, representação e capacitação. O apoio que presta assume formas diversas, ajustadas às necessidades e prioridades das associadas, indo desde a promoção de ações de formação e capacitação específicas, ao apoio na interpretação de enquadramentos legais ou na criação de oportunidades de cooperação.
Facilita ainda o acesso a informação relevante, atualizada e útil para a intervenção das ONGD, seja sobre políticas públicas, oportunidades de financiamento, ou tendências internacionais. Atua também como ponte entre as ONGD e decisores políticos, instituições públicas e outras redes da sociedade civil, procurando garantir que as preocupações do setor são ouvidas e tidas em conta.
Este trabalho contribui para o coletivo do setor e para uma presença mais articulada e influente das ONGD no debate público sobre o desenvolvimento internacional.
Planos para o futuro
A Presidente adiantou-nos que quarenta anos depois da sua criação, e num mundo marcado por novos desafios políticos e sociais à escala global, a Plataforma continua a afirmar-se como um espaço de encontro, cooperação e compromisso com um futuro mais justo, solidário e sustentável para todas e todos.
Os próximos anos serão dedicados ao reforço do apoio em termos de advocacy às ONGD e, em particular, aos setores da Cooperação para o Desenvolvimento, da Ação Humanitária e de Emergência, e da Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global – áreas centrais para a justiça global e para a construção de respostas solidárias aos desafios do presente.
“Pretendemos encontrar formas mais adequadas e eficazes de responder às necessidades das nossas associadas, sobretudo num contexto em que se torna mais difícil comunicar e sensibilizar a sociedade portuguesa para a importância do trabalho das ONGD, apesar do apoio que estas continuam a merecer por parte da opinião pública.
Olhando para o futuro, acompanharemos de forma ativa a implementação da Estratégia da Cooperação Portuguesa 2030, a aprovação e operacionalização da nova Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento (ENED), e iniciaremos o trabalho de preparação do cenário pós-Agenda 2030, em especial no quadro da política europeia de desenvolvimento.” Finaliza Carla Paiva.



