O Jornal Comunidades Lusófonas entrevistou Ugur Injaz, um nacional do Curdistão que fez um esboço sobre o o seu país e toda a zona envolvente. Não é fácil caraterizar o Curdistão, pois encontra-se na “encruzilhada do mundo árabe”, com uma diversidade cultural. “Os governos britânico e francês forçaram os curdos, que não têm quase nada em comum com as suas comunidades vizinhas, a viver sob quadros culturais, linguísticos e nacionais completamente diferentes”. A sua riqueza em recursos naturais, incluindo petróleo, gás, água e terras agrícolas férteis, são polos atrativos e muito apetecíveis a muitos países. No que se refere à emigração de portugueses, Ugur revelou que nos anos 90 havia empresas portuguesas a operar no país, mas pensa que agora não há.

Jornal Comunidades Lusófonas: Na qualidade de especialista do Curdistão, como o classifica: como país, cidade, ou território quadripartido. Como o classifica?
O Curdistão é uma região rica em história e cultura, mas sem um Estado curdo independente. O seu significado varia conforme o contexto: no Irão, há uma província chamada “Curdistão”, que representa apenas uma fração das terras curdas, referidas como “Curdistão Oriental”. No Iraque, a “Região do Curdistão do Iraque” é uma área semi-autónoma governada pelo Governo Regional do Curdistão (KRG). Na Síria, as regiões do norte, incluindo Alepo, até ao Mar Mediterrâneo, são frequentemente chamadas de “Curdistão Ocidental”. Na Turquia, cerca de 30 a 35 milhões de curdos – aproximadamente 40% da população – vivem predominantemente no leste.
JCL – Faça-nos uma breve apresentação do Curdistão?
Ugur – Os curdos são um dos grupos étnicos mais antigos do Médio Oriente, com uma história que remonta a milhares de anos. São uma nação indígena, que vivem nestas terras desde tempos antigos. A língua curda pertence à família indo-europeia, com vários dialetos que refletem a sua rica diversidade cultural.
Os curdos partilham um forte sentido de identidade, enraizado na sua língua, tradições e resiliência. A diversidade do Curdistão e o seu significado histórico tornam-no uma parte chave do Médio Oriente, com vasto potencial para o desenvolvimento e colaboração. O Curdistão é uma região multi-religiosa e culturalmente diversa, onde várias comunidades coexistem pacificamente. Embora cerca de 60% dos curdos sejam muçulmanos (embora os números exatos não sejam disponíveis devido à falta de dados fornecidos pelo Estado), há também populações significativas de alauítas, cristãos, judeus, yazidis e zoroastristas. Esta diversidade torna o Curdistão um lugar único de convivência no Médio Oriente. O cristianismo, em particular, teve um papel importante na história do Curdistão. Os curdos contribuíram para a religião tanto intelectual quanto culturalmente. Nos tempos modernos, isso foi simbolizado pela visita histórica do Papa Francisco ao Curdistão e ao Iraque em março de 2021.
A visita, facilitada por um convite do Governo Regional do Curdistão no Iraque, sublinhou a abertura da região. O Primeiro-Ministro Masrour Barzani liderou a delegação até ao Vaticano para garantir este evento histórico. Isso contrasta com a visita cancelada do Papa João Paulo II durante o regime de Saddam Hussein, destacando a diferença nas atitudes entre a liderança curda e outros na região. Durante a guerra contra o ISIS, o Governo Regional do Curdistão teve um papel crucial na proteção das minorias na região, incluindo os cristãos curdos, contra o terrorismo e a perseguição. Para os curdos, a religião não é uma causa de divisão, mas sim uma fonte de riqueza cultural, contribuindo para um belo mosaico de convivência e respeito mútuo.
JCL – O Xadres do médio Oriente é muito complexo de se explicar, pode dizer-nos porque razão há sempre tantas convulsões naquela região do mundo?
Ugur – O mundo nunca foi um lugar pacífico. Desde os primeiros dias da história humana, os conflitos surgiram – muitas vezes por motivos aparentemente triviais. Por exemplo, a história de Caim e Abel, os filhos de Adão e Eva, simboliza a propensão da humanidade para o conflito. Era uma época sem petróleo, sem recursos, sem nada.
Da mesma forma, a Europa tem a sua história de conflitos, desde as guerras medievais até às devastadoras Guerras Mundiais do século XX. A minha intenção não é comparar regiões para determinar qual delas enfrentou mais conflitos, mas destacar que a guerra e a discórdia têm sido constantes ao longo da história humana.
O Médio Oriente, desde meados do século XX, tem sido um ponto focal da instabilidade global. Conflitos envolvendo potências regionais e internacionais perpetuaram um ciclo de violência e tensão. Essa volatilidade resulta das divisões políticas, interesses económicos e da complexidade da geopolítica da região.
Como consultor de negócios e investimentos especializado no Médio Oriente, a minha perspetiva sobre esta questão é focada na economia, mais do que na política. A análise geopolítica é uma parte essencial do nosso trabalho, pois procuramos fornecer os melhores conselhos possíveis aos nossos clientes. O nosso papel é orientar os clientes na tomada de decisões informadas sobre o investimento de recursos substanciais – frequentemente milhões de dólares – nesta região complexa.
Para entender a política da região, é necessário seguir o fluxo de dinheiro e poder. Olhando para o mapa do Médio Oriente, vemos duas zonas geográficas e económicas principais: o Golfo Pérsico a leste e o Levante a oeste.
Historicamente, antes da descoberta do petróleo, o Levante – atualmente Israel, Jordânia, Líbano, Curdistão e Damasco – era o centro económico e comercial da região, com rotas comerciais que o conectavam a Meca na Arábia Saudita, Istambul e mais além na Europa.
No entanto, a descoberta do petróleo deslocou a importância económica e política para a região do Golfo, particularmente na segunda metade do século XX.
Países que antes eram periféricos no palco do Médio Oriente tornaram-se atores-chave na geopolítica global. Esta transformação económica trouxe novos desafios e complexidades às dinâmicas de poder da região.
No século XX, a geopolítica do Médio Oriente era relativamente simples de analisar, envolvendo principalmente atores estatais. Hoje, a situação assemelha-se a um tabuleiro de xadrez.
Dois fatores principais contribuem para essa complexidade: a Interdependência Económica Global e os Atores Não Estatais e Estados Frágeis. A economia global evoluiu para uma rede interconectada. A manufatura, por exemplo, depende de cadeias de abastecimento que abrangem continentes – matérias-primas provenientes de África, semicondutores produzidos na Ásia, inovações desenvolvidas nos Estados Unidos e talento qualificado fornecido pela Europa.
Uma perturbação em qualquer parte dessa cadeia cria efeitos em cadeia que impactam não apenas a região imediata, mas todo o sistema global, incluindo o Médio Oriente. Esta interdependência é evidente na geopolítica e economia do Médio Oriente.
Tomemos Israel como exemplo: apesar das tensões políticas e históricas com os estados vizinhos, a sua tecnologia e inovação são vitais para o desenvolvimento da região. Muitos países dependem implicitamente dos avanços israelitas na agricultura, gestão de água e cibersegurança. De forma similar, o Iraque, que detém as quintas maiores reservas de petróleo comprovadas do mundo, continua a ser um fornecedor essencial de energia. Apesar dos conflitos com alguns países vizinhos, as exportações de petróleo e gás do Iraque são cruciais para manter o fornecimento global de energia.
Outro exemplo significativo dessa interdependência é o Corredor Económico Índia-Médio Oriente – Europa (IMEC), uma rota comercial proposta para melhorar o comércio e a conectividade no atual cenário geopolítico. O corredor ligará a Índia à Europa através dos Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Israel e Grécia.
À primeira vista, a cooperação entre esses países pode parecer desafiante devido às suas diferentes posições políticas – considere-se as relações sauditas-israelitas ou as dinâmicas saudita-emirados. No entanto, quando os interesses económicos entram em jogo, o pragmatismo frequentemente prevalece. Ao mesmo tempo, o Iraque lançou o projeto da Estrada de Desenvolvimento, que visa conectar o Golfo Pérsico à Europa através da Turquia, por meio de uma vasta rede de estradas, ferrovias, portos e cidades.
Esta iniciativa ambiciosa, no entanto, traz uma camada adicional de complexidade devido ao envolvimento do Curdistão. A estabilidade deste projeto exige que tanto o Iraque quanto a Turquia se envolvam com as autoridades e partes interessadas curdas, abordando as sensibilidades políticas enquanto asseguram a segurança e o sucesso da infraestrutura.
Estes exemplos destacam como a interdependência económica muitas vezes impulsiona a colaboração, mesmo entre nações com profundas diferenças políticas, sublinhando o equilíbrio intrincado entre os conflitos regionais e os interesses comuns no Médio Oriente.
No século passado, a política do Médio Oriente foi dominada por atores estatais. No entanto, a era moderna viu a ascensão de atores não estatais, reconfigurando as dinâmicas políticas da região. Esta mudança pode ser verificada até o Acordo Sykes-Picot, que impôs fronteiras artificiais que não refletiam as realidades sociológicas e demográficas da região. Para deixar claro, o Sykes-Picot forçou os curdos a viver sob regimes árabes e ao lado de comunidades árabes. Este status quo persiste há mais de 100 anos.
Imaginem propor que os austríacos vivam sob o domínio alemão – apesar de compartilharem a mesma língua, religião e estilo de vida, tal sugestão pareceria totalmente absurda. No entanto, os governos britânico e francês forçaram os curdos, que não têm quase nada em comum com as suas comunidades vizinhas, a viver sob quadros culturais, linguísticos e nacionais completamente diferentes.
Essa decisão criou estados artificiais, fomentando instabilidade e divisão na região que persiste até hoje. Contribuiu para a fragmentação de estados como o Iraque e a Síria. O colapso desses estados como entidades funcionais criou um vácuo de poder que permitiu que grupos não estatais surgissem e prosperassem.
Nas últimas décadas, testemunhámos uma proliferação extraordinária de atores não estatais no Médio Oriente. Esses grupos, que vão de milícias e insurgentes a organizações extremistas violentas, assumiram uma importância crescente na vida económica, social e política da região.
A sua crescente influência adicionou camadas de complexidade ao já intrincado cenário político. Os atores não estatais não só desestabilizam estados frágeis, mas também desempenham um papel significativo na geopolítica regional. Eles têm a capacidade de transcender fronteiras, alinhar-se com potências estrangeiras e até desafiar a soberania dos governos existentes. À medida que esses atores continuam a crescer em importância, destacam a necessidade urgente de abordar as causas profundas da fragilidade dos estados, incluindo falhas de governança, falta de oportunidades económicas e divisões sociais não resolvidas, para trazer estabilidade a longo prazo à região.
JCL – As guerras, são essencialmente económicas, é por essa razão que o Curdistão está tão dividido e fragmentado? Onde se coloca a religião neste contexto?
Ugur – As divisões e fragmentação do Curdistão estão profundamente enraizadas em razões económicas e geopolíticas. As terras curdas são ricas em recursos naturais, incluindo petróleo, gás, água e terras agrícolas férteis, e possuem uma importância geográfica significativa como um ponto estratégico de cruzamento.
Esses fatores tornaram as regiões curdas valiosas para os estados sob os quais são governadas, levando a tensões e disputas de longa data. Por exemplo, a Região do Curdistão no Iraque possui aproximadamente 5% das reservas globais de gás. Trata-se de um recurso com o potencial de transformar não só a economia da região, mas também a geopolítica global.
No entanto, disputas políticas com o governo iraquiano têm dificultado a plena utilização e exportação desses recursos. Bagdade tem frequentemente usado o seu controlo sobre as receitas energéticas como uma alavanca nas negociações políticas, complicando a capacidade do Governo Regional do Curdistão de alcançar independência económica.
A dimensão internacional desta questão é clara; as exportações de petróleo e gás curdos poderiam fornecer à Europa energia mais acessível, o que teria implicações significativas nos mercados globais de energia.
Quanto à religião, não parece ser o principal fator na fragmentação do Curdistão. A maioria dos curdos é muçulmana e tem contribuído para o pensamento islâmico durante séculos. Se a religião fosse a força motriz por trás das fronteiras, seria difícil explicar por que outros estados predominantemente muçulmanos no Médio Oriente existem sem disputas semelhantes. A campanha genocida Anfal sob Saddam Hussein, na qual milhares de curdos foram massacrados, não provocou uma condenação generalizada do mundo muçulmano. Esse silêncio sugere que o nacionalismo étnico, mais do que a religião comum, desempenhou um papel decisivo no tratamento dos curdos. Da mesma forma, a luta curda contra o ISIS destaca essa dinâmica. A organização terrorista radical islâmica visou as populações curdas, apesar da “religião” comum. Esses exemplos sugerem que o nacionalismo, ocasionalmente entrelaçado com a religião, tem sido um fator mais significativo nas divisões políticas da região.
JCL – O mundo Árabe, é muito peculiar, há muitos entendidos que falam do mundo Árabe, na sua opinião, como o classifica?
Ugur Ingaz – O mundo árabe é frequentemente percebido como uma entidade única e unificada, particularmente a partir de uma perspetiva externa ocidental. No entanto, esta visão simplifica excessivamente uma região que abrange 22 países no Médio Oriente, Norte de África e Leste de África. Embora esses países partilhem uma língua comum, o árabe, e laços culturais, “cada um tem a sua própria história, sistema político e estrutura social distinta”.
Por exemplo, o Iémen e o Líbano não podem ser facilmente categorizados juntos, apesar da língua comum, pois as suas realidades políticas e económicas são muito diferentes. Historicamente, as tentativas de unificar o mundo árabe falharam frequentemente devido a estas diferenças. Um exemplo proeminente é a República Árabe Unida (R.A.U.), uma união entre o Egito e a Síria iniciada em 1958 sob o nacionalismo pan-árabe do presidente Gamal Abdel Nasser.
Nasser imaginou um mundo árabe unificado com base na cultura, religião e língua partilhadas. No entanto, na prática, a união foi dominada pelo Egito, o que alienou as elites políticas e económicas sírias. Esta disparidade levou à retirada da Síria em 1961, após um golpe militar que expulsou as forças egípcias.
O fracasso da R.A.U. sublinha que falar a mesma língua não se traduz necessariamente numa identidade nacional partilhada. Embora o árabe seja um fator unificador, nações como a Síria e o Egito têm trajetórias históricas, prioridades e sistemas de governação distintos. A retirada da Síria da R.A.U. exemplificou como as tentativas de unificação baseadas em semelhanças linguísticas e culturais muitas vezes ignoram essas distinções mais profundas.
Hoje, o mundo árabe continua a ser diverso e fragmentado. Os sistemas políticos variam entre monarquias como a Arábia Saudita e repúblicas como a Tunísia, e as práticas culturais variam amplamente entre as regiões. Estas diferenças não são apenas um reflexo de fatores históricos e geográficos, mas também das formas únicas em que cada país tem interagido com a comunidade global.
Esta diversidade torna fundamental abordar a região com uma compreensão das suas nuances, em vez de generalizações amplas. Como consultor de negócios que trabalha de perto com os estados árabes, testemunhei em primeira mão a importância de compreender estas distinções ao navegar pela região. Cada país tem as suas próprias nuances culturais, prioridades económicas e práticas empresariais.
Por exemplo, o ambiente cosmopolita de Dubai é vastamente diferente da sociedade mais tradicional da Arábia Saudita, apesar da sua proximidade geográfica. Da mesma forma, Marrocos, frequentemente categorizado dentro do mundo árabe devido à sua língua, tem uma identidade africana distinta e uma abordagem própria nos negócios. Estas diferenças são significativas para parcerias, investimentos e negociações bem-sucedidas. Já vi empresas estrangeiras lutarem quando assumem uma abordagem de “tamanho único”, como tentar aplicar as suas experiências nos Emirados Árabes Unidos na Arábia Saudita ou em outros países árabes. O mundo árabe é, um mosaico de nações diversas, unidas pela língua, mas separadas pela política, história e cultura. A minha especialização está em identificar e respeitar estas características únicas, permitindo que os meus clientes construam ligações significativas e alcancem resultados tangíveis na Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Curdistão e Iraque.
