Da Roma Antiga ao século XXI: o colapso começa sempre na alma coletiva
Esta semana cruzei quatro sinais.
Vi uma entrevista com o historiador Barry Strauss sobre a queda de Roma.
Li um artigo da Harvard Business Review sobre aquilo a que chamam mattering deficit.
Assisti a um reel de comentário político português que me fez arrepiar pela lucidez.
E ouvi Agnès Callamard, Secretária-Geral da Amnistia Internacional, fazer um apelo direto à ação cívica perante a escalada autoritária global.
Quatro formatos distintos, uma mesma linha de fundo:
quando a cidadania se rompe, os impérios caem.
Não pretendo lançar alarmismos.
Mas precisamos de reconhecer que a primeira falência de qualquer regime é emocional, simbólica, invisível.
Antes das instituições ruírem, é a ligação entre as pessoas que se desfaz — a noção de pertença, de comunidade, de responsabilidade partilhada.
A queda começa quando deixamos de importar
Segundo estudos recentes publicados na Harvard Business Review, o que leva uma sociedade à estagnação, ou ao colapso, é aquilo que muitos consideram intangível: a perda da sensação de que se é visto, ouvido e valorizado.
Este fenómeno é hoje reconhecido como mattering deficit.
Tal como Barry Strauss explicou sobre Roma, os impérios não caem apenas por invasões externas ou erros estratégicos.
Caem quando os cidadãos deixam de acreditar que fazem parte de algo maior.
Quando os laços que unem o indivíduo ao destino coletivo se quebram, o colapso já começou , mesmo que à superfície tudo pareça estável.
Esse desligamento está hoje em curso, de forma subtil, por todo o mundo dito democrático.
Manifesta-se no cansaço social, na abstenção eleitoral, na desilusão política, na fragmentação cultural, na crise de confiança generalizada.
O assalto ao poder começa pelo esvaziamento da cidadania
Numa das suas intervenções mais recentes, David Dinis, diretor-adjunto do Jornal Expresso e uma das vozes mais lúcidas da análise política nacional, alertou:
“Não sei se a AD já percebeu: o Chega está num assalto ao poder e não descansa enquanto não acabar com Montenegro.”
Estas palavras não são apenas comentário partidário.
São um aviso sobre a erosão real e perigosa do tecido democrático.
Porque onde a cidadania enfraquece, onde as pessoas se sentem irrelevantes, traídas ou ignoradas, o extremismo não só entra: é acolhido.
E isto não é apenas um fenómeno português.
A nível internacional, Agnès Callamard, Secretária-Geral da Amnistia Internacional, declarou:
“Quando leis e práticas autoritárias se multiplicam em todo o mundo ao serviço dos interesses de poucos, os governos e a sociedade civil têm de agir com urgência para conduzir a humanidade de volta a um terreno mais seguro.”
A frase pode soar genérica mas a análise não é.
O relatório anual da Amnistia detalha como a liberdade de expressão, os direitos das mulheres, a liberdade de imprensa e os direitos dos refugiados estão a ser sistematicamente esmagados.
E não apenas em regimes ditatoriais, também em democracias ocidentais, sob o disfarce de leis de segurança, “combate à desinformação” ou controlo económico.
Reativar a cidadania exige mais do que palavras
No ano passado, integrei um grupo de trabalho que apresentou no Parlamento Europeu dez propostas concretas para a renovação do contrato social europeu.
Foi um dos meus contributos enquanto cidadã ativa, não apenas como profissional ou representante de organizações.
Piso também para o bom, porque acredito na força da construção. Mas faço-o com total consciência da minha própria responsabilidade.
As medidas que apresentámos iam desde a promoção da literacia democrática à transparência institucional, da inclusão intergeracional à responsabilização pública.
Mas nenhuma medida legislativa poderá ser suficiente se não houver coragem ética, compromisso cívico e, por vezes, sacrifício pessoal.
. Porque a cidadania verdadeira não é confortável.
É prática. É escolha. E, às vezes, é perda.
O exemplo mais claro disso foi o de Bill Owens, produtor executivo do 60 Minutes, que se demitiu após pressões externas relacionadas com uma entrevista crítica a Donald Trump.
Em vez de ceder, escolheu sair para proteger a integridade do jornalismo.
Muitos ter-se-iam calado. Ele optou pela consciência.
É esse tipo de gesto que mantém viva a ideia de cidadania.
É esse tipo de perda que, na verdade, representa um ganho para todos nós.
O início do fim: quando o “nós” desaparece
Roma não caiu num só dia. Nenhum império cai assim.
O que colapsa primeiro é a ideia de coletivo, de bem comum, de futuro partilhado.
Quando o “nós” desaparece, seja nos media, na política, nas famílias ou nas praças públicas, abrimos espaço para o despotismo, para o medo e para a indiferença.
Hoje, o mundo está mais interligado do que nunca, mas também mais fragmentado internamente.
Temos mais voz mas menos escuta. Mais informação mas menos verdade. Mais instituições mas menos confiança.
Por isso, mais do que nunca, precisamos de um novo pacto.
Mas não um pacto entre partidos ou governos.
Um pacto entre nós, os que ainda acreditam que vale a pena importar, mesmo quando parece que ninguém está a ouvir.
Que este texto vos inspire ou vos provoque. Não procuro concordância, mas romper as correntes da apatia.
Por Marisa Monteiro Borsboom
