Capa do livro Memórias da Ditadura: Sociedade, Emigração e Resistência
Em plena celebração de meio século de liberdade e democracia em Portugal, momento cimeiro da memória coletiva e identidade nacional entreaberto pela Revolução de 25 de Abril de 1974, a efeméride constitui uma oportunidade simbólica de revisitar o país como era há 50 anos.
Uma viagem pelas memórias do passado, não muito distante, do Portugal de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano. Ditadores, respetivamente, de um regime político autoritário e conservador designado de Estado Novo, instituído em 1933, cujos pilares ideológicos espargidos na trilogia Deus, Pátria e Família, assentaram na força repressiva da polícia política (PIDE), nas amarras da censura e na ausência de liberdade.
Um país profundamente imobilista, de costas voltadas para a Europa, receoso dos ventos da mudança, orgulhosamente isolado, rural, pobre, atrasado, analfabeto e envolto num traumático e longo conflito militar. Mormente, a Guerra Colonial (1961-1974), contenda bélica que opôs as Forças Armadas Portuguesas e os Movimentos de Libertação de Angola, Guiné-Bissau e Moçambique, um dos principais motivos que conduziram à Revolução dos Cravos, e que ao longo de mais de uma década robusteceu as fileiras da emigração, muitas das vezes de forma clandestina.
Numa época, em que como assinala António Barreto, “mais de metade da população portuguesa nasceu já depois do 25 de Abril de 1974. Os que nasceram antes são uma minoria, sendo que muitos destes nem sequer tinham idade suficiente para perceber o que acontecia então e para se lembrar hoje” (A liberdade não divide). Esta viagem ao tempo da ditadura, assume-se, portanto, como um dever de memória e um exercício de cidadania no fortalecimento da democracia através da importância da história para inquirir o passado, pensar o presente e projetar o futuro.
É nesse sentido, que o livro recentemente dado à estampa, Memórias da Ditadura: Sociedade, Emigração e Resistência, no qual tive a honra e privilégio de nortear a sua conceção, assume-se como um convite a uma viagem no tempo conduzida pelas memórias ilustradas de Fernando Mariano Cardeira. Antigo oposicionista, militar desertor, emigrante e exilado político, natural de Fanhais, Nazaré, onde nasceu em 1943, cujo ativismo se entrecruzou com acontecimentos importantes ocorridos nas últimas décadas da mais longa ditadura da Europa do século XX. Neste novo livro, uma edição bilingue (português e inglês) com tradução de Paulo Teixeira, e prefácio do historiador e investigador José Pacheco Pereira, fundador da associação cultural Ephemera, é revelado o espólio singular de Fernando Mariano Cardeira, cuja lente humanista e militante teve o condão de captar fotografias marcantes para o conhecimento da sociedade, emigração e resistência à ditadura nos anos 60 e 70.
Através das memórias visuais do antigo oposicionista, assentes num conjunto de centena e meia de imagens, a obra realizada com o apoio institucional da Comissão Comemorativa 50 anos 25 de Abril, aborda, desde logo, as primeiras manifestações do Maio de 1968 em Paris, acontecimento icónico onde o fotógrafo engajado consolidou a sua consciência cívica e política. E, com particular incidência, o quotidiano de pobreza e miséria em Lisboa, a efervescência do movimento estudantil português, o embarque de tropas para o Ultramar, os caminhos da deserção, da emigração “a salto” e do exílio, uma estratégia seguida por milhares de portugueses em demanda de melhores condições de vida e para escapar à Guerra Colonial nas décadas de anos 1960-70.