Na minha experiência enquanto farmacêutico várias vezes deparo-me com a expressão “o que é natural é bom” e, com a consequente busca das pessoas pela derradeira opção orgânica, quase numa demanda em que seu corpo é uma extensão de um bem ou valor maior – a natureza, que não deseja mal e que é espontânea, tal qual o sentimento. O que vem da natureza, crê-se comummente, não nos poderá fazer mal, mas antes pelo contrário colocará o Homem mais perto do seu verdadeiro eu e estado natural. Ao contrário do que pensamos pensar, essa ideia não só presente na saúde, mas também na demanda comercial do dia a dia, é também ela uma corrente filosófica e política (diria até mesmo religiosa) que não é de hoje e antes ascende a um filósofo francês do séc. XVIII – Jean-Jacques Rosseau.
Ele defendia que o Homem tal como a natureza, aquando da sua existência enquanto caçador e recoletor, seria naturalmente bom, mas a construção social o teria tornado mau a partir da criação de expetativas sociais face ao que este verdadeiramente sentia. Ou seja, ela postula que é a sociedade aquilo que corrompe o Homem. Pois bem, face a esse raciocínio, que se prende com o dogma da natureza sã e pura, poderei eu mesmo dizer que a natureza é verdadeiramente boa? Tenho firmes dúvidas a esse respeito.
Em primeiro lugar, essa crença nasce do romantismo que a partir do século XVIII e na pós-revolução industrial sentiu um grande incómodo com a produção e consumo massivos que tornou cada indivíduo uma ferramenta de produtividade, como que um operário constante da ordem e colmeia sociais. Como se não bastasse, o grande êxodo rural ainda mais contribuiu para cidades de densidade populacional nunca antes vista, onde a poluição e a falta de higiene reinavam, o que mostrou a incapacidade do mundo moderno para, face ao avanço técnico da produção, ter correspondido celeremente à ambição de uma população em deslocamento que não conseguia acomodar de modo digno. Esse desconforto pela cidade insalubre, desigual, criou nos autores da época uma atração pelo que fora deixado, pelo verde do campo face ao cinzento do ar poluído pelo carvão, e do silêncio e da acalmia do campo face a uma cidade que passou a ser o barulho da ansiedade humana. Os próprios movimentos vanguardistas criavam desconfiança nos românticos porque estes, sabiamente, viam que a ciência não poderia resolver tudo. O romântico não acreditava que seria o conhecimento a purificar o Homem, se com isso sacrificasse o seu tempo. Não obstante a importância do movimento romântico, ele falha num aspeto crucial. O campo embora belo, só era calmo porque as pessoas não tinham ao que aspirar. O crescimento económico, social, mental, só se dá com o aprimorar de tarefas, com o desempenho das pequenas peças com destreza que se juntarão para fazer o puzzle final. O problema da Revolução Industrial não foi o abandono da natureza, mas pelo contrário o abraçar da natureza, ou seja, o aproveitamento da técnica para rendermos sobre pessoas que inocentemente confiaram suas vidas ao desenvolvimento e foram deixadas em condições sub-humanas. O Romantismo esquece que o tempo não volta atrás, ao mesmo tempo que também não viu quanta população ao longo de 2 séculos conseguiu sair da pobreza para ter casa, alimento diário, transporte e, sobretudo, lazer. Historicamente, cada indivíduo passou a ter tempo para pensar.
Em segundo lugar, o facto de cada indivíduo ter mais tempo expôs as fragilidades não da nossa sociedade mas da natureza humana. Precisamente por ter mais tempo hoje vemos muita gente, por ter lido um livro, por ter visto um filme, por ter tido uma aula, ou simplesmente por ter um curso, levantar-se com suposta legitimidade moral, técnica e qualquer que seja, para propor soluções, esgrimar críticas e categorizar pessoas ou obras, como se o conhecimento, escasso que tenha, possa ser um fio de prumo que em caso último separa o que é bom do que é mau. Tal é exposto no pensamento do filósofo espanhol Ortega y Gasset no seu “A Rebelião das Massas” e transmite não a ideia da sociedade contaminar o Homem mas, pelo contrário, a tese de que o tempo e a aparente evolução da sociedade levam a que o Homem, em contraposição, demonstre a sua natureza de se achar mais do que de facto é. A arrogância não é social, a soberba antes é uma característica inerentemente humana quando esse é defrontado com a hipótese de poder. Esta semana comecei a ler “Liderança” de Henry Kissinger e um bom exemplo deste livro, a propósito da necessidade de humildade, foi a análise biográfica que o autor faz do chanceler do pós-segunda guerra mundial da Alemanha Ocidental, Konrad Adenauer. O alemão percebeu que era fundamental aos germânicos terem a humildade de aceitar a submissão total aos Aliados no sentido de restaurar a confiança das outras populações na reconstrução alemã, fazendo da Alemanha um parceiro confiável, mas sobretudo igual, e capaz de vencer o seu passado, para se tornar num dos países fundadores da União Europeia. Para isso teve de pôr de parte a restauração imediata da soberania, bem como relegar para mais tarde a possibilidade de unificação. A legitimidade moral não surge por direito, mas cria-se, e tal é uma prova irrefutável de que é a vida em sociedade que permite balançar a humildade, o diálogo e a liderança humanas, pois tais atributos seriam impossíveis existir numa sociedade pré-tribal em que a única coisa que movia o Homem era a sobrevivência e o imediato.
Em terceiro lugar, e como remate, basta olhar para a natureza para percebermos que de facto ela não é pura, quando somos confrontados com a miríade de venenos que existem, mais poderosos que qualquer fármaco, e com as atrocidades, embora irracionais, que até sistemas animais nos apresenta, como a eliminação das crias de um rival derrotado em batalha. A natureza não existe para nos dar bofetadas morais, mas antes como aviso. Aviso de que devemos ultrapassar a natureza e abandonar o puritanismo e, sobretudo, ser humildes, porque a realidade é feita de tudo, menos de certezas.
Autor: Pedro Miguel Santos
