No sentido de fechar essa primeira senda de artigos, remato com um terceiro elemento dessa tríade de bloqueio do ser humano. A saber, no primeiro artigo escrevi sobre esperança/expetativa (fantasia do futuro almejado – em “A Ode ao Liberalismo”) e no segundo sobre o ego histórico que caracteriza muitos de nós (fantasia de um passado glorioso – “História como Aprendizagem e não como Ego”). Essa trindade é enclausurada pela apatia no momento presente ou num termo mais calão, mais grosseiro, a frouxidão (a passividade no momento presente).
A palavra apatia provém do termo grego apathēs que deriva de “a”, ou seja ‘sem’, e de pathos, que pode significar emoção, ou paixão, ou doença. Como tal, pela sua origem, tal vocábulo remete para um estado neutro, sem emoção, sem desejo ou sem sofrimento. Daí a sua palavra-irmã, apateia, na filosofia estóica representar a busca do filósofo por um estado sem perturbações emocionais.
E se, sem dúvida, a vida depende de um binómio ação-aceitação – o que podemos controlar deve impelir-nos a agir e o que não podemos modificar deve, ao invés, convidar-nos a aceitar, algo muito presente na Terapia Cognitivo-comportamental em Psicologia – custa-me que uma visão apática, por um lado, ou de apateia, pelo outro, seja um caminho equilibrado porque poderá comprometer duas importantes palavras que são guias fulcrais do momento presente – a vontade e a visão.
Como podemos ler na famosa poesia de Ricardo Reis (heterónimo de Pessoa) – Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio – existe uma franca defesa de uma atitude passiva ou apática face ao corrimento da vida quando o eu poético convida a sua enamorada Lídia, ao simplesmente “Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.”, algo que nega o que de mais sagaz existe na nossa natureza, a vontade, a expressão pela qual nos tornamos autores desse rio. Uma vida apática, sem sentimento, sem paixão, pelo receio do cansar ou pela inevitabilidade do passar – a morte – não pode ser lida como uma vida tranquila e racional, mas antes como uma vida cobarde. A existência tem exatamente o seu sentido pelo facto de ser finita e, por conseguinte, de tal assunção só se pode depreender que o presente importa e tal presente só se pode manifestar pela vontade que com o seu pathos, paixão, constrói a expressão própria daquele indivíduo.
É verdade que viver com paixão pode igualmente deixar-nos a caminho da tragédia porque leva-nos a arriscar e a muitas vezes perder o controlo, quase que como um Aquiles que parte para Tróia sabendo que irá morrer, mas que profecia aparte, vê nessa demanda a sua escolha – a sua responsabilidade. Ter escolha, além sorte, além azar, mesmo que fadado ao insucesso, significa ser autor.
E alguém que não é autor, facilmente deixa os outros escolherem em detrimento de si, e inevitavelmente acusará aquilo que chama de rio ou de universo pelo seu destino, tornando-se num elemento frouxo e não assertivo em relação ao que quer, a quem gosta e àquilo que faz. Enfim, nada mais que um espectro que espera a sua morte e que se nega porque, na verdade, tem medo de si mesmo. E como escreveu Carl Jung, só absorvendo a nossa sombra, isto é, os nossos defeitos, medos, fracassos e agressividade, é que poderemos estar cientes do que queremos, de como proteger quem gostamos e de sermos verdadeiros zeladores da nossa casa, profissão e micro-mundo, seja onde nascemos, seja na diáspora.
Por outro lado, também me preocupa, como hoje em dia, a filosofia estóica, com a sua apateia, se tornou um campo do marketing, para o mercado do coach que a usa como mote para o autoconhecimento e a realização pessoal, ignorando que ao contrário do que advoga, o autoconhecimento pode, na verdade, expor o quão errados e torrenciais somos, e que a possível resposta, ao contrário da tranquilidade idealizada, resida antes em percebermos o quão canalhas somos. E isso, no mundo de hoje, como aliás no mundo de sempre, devia ser o mote, porque de pouco basta gritar corrupção, quando à mínima possibilidade o corrupto somos nós. Compreender isso é desde logo ter consciência da responsabilidade de sujeitarmos a nossa vontade a uma visão responsável.
Em suma, temos de ter cuidado para não falar de quão má é a sociedade ou o universo em que vivemos, gritando o quão vítimas somos ou, em quão desprezíveis os outros são, os eles – os mandantes – quando na verdade somos piores que eles, uns falsos moralistas e que, como escreveu Nietzsche, “Em Assim Disse Zaratustra”, devemos antes abandonar o pântano, não nos vá esse, também, a nós, nos transformar em rãs e sapos desse mesmo lodo que acusamos.
Chega de corporativismo ou de guerras etárias ou de classe. Chega de falta de empatia, chega da obsessão pela igualdade ou pela diferença, eis a Hora das decisões.
O Estado nada mais é que o resultado de uma Visão, de onde escolher a quem se tira o seu Imposto, e onde, e em em quê remetê-lo. Logo, cabe a nós, os eleitores, mais do que fomentar guerras entre nós, determinar o quanto antes, que serviços queremos que o nosso Estado garanta, pois tal como a vida, os recursos e o dinheiro (de todos), também estes tendem para o fim. E isso, essa escolha, implica não ficar a ver o rio passar, mas em ser parte do próprio rio, a ler, a estudar e a ter a visão da Sociedade que queremos, mas mais importante ainda, da sociedade que é necessária e livre – onde se escolhe quer o que se ganha, quer o que se perde.
Deixemos a apatia, deixemos a apateia e, sobretudo, para lá dessa cosmética, eliminemos essa ideia de passividade, trocando-a por vontade e visão, visão para ver além do pântano, além da ideologia, além da Sombra e, assim, esquecer a expetativa, lembrar a História e ter a visão de fazermos o que importa Hoje. Deixemos de governar para o passado ou para o futuro, construamos Primeiro o nosso Presente e nosso orçamento, sempre com responsabilidade.
Autor: Pedro Miguel Santos