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Terça-feira - 11 Novembro 2025

EXCLUSIVO: Sem Correntes – 24 agosto 2025 – Uma Europa sem correntes: entre cinzas, ausências e a voz de um Professor que ainda acredita

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Do Pinhal de Leiria ao Alentejo ocupado, entre fogos esquecidos, promessas verdes que apagam o chão e um mundo onde já ninguém sabe onde se agarrar.

Regresso de uma pausa breve. A pausa possível. Com o corpo ainda entre sal e sombra, e a mente já a puxar pelas perguntas de sempre. Viajei em família por zonas que conheço bem. Zonas onde voltei a sentir orgulho e pertença. Zonas que, semanas depois, arderam.

Não foi a primeira vez que vi paisagens desaparecerem no noticiário logo depois de as visitar. Mas desta vez doeu mais. Porque os caminhos ainda estavam vivos na memória. E a beleza, que parecia intocável, ficou marcada por uma espécie de luto antecipado. Até que a natureza recupere, se o deixarmos, tudo o que foi verde será apenas memória queimada.

Durante essa viagem, fiquei num parque no Pinhal de Leiria. Impressionava-me desde sempre. Porque sou portuguesa. Porque sei o que significou ao longo da história. Mas foi ao querer mostrá-lo ao meu marido, que não é português, que decidi procurar mais detalhes. Queria dar-lhe contexto, queria que ele percebesse. Foi aí que descobri que, em dois mil e dezassete, cerca de oitenta e seis por cento do Pinhal tinha ardido. Sei que para muitos isto não passou despercebido. Mas confesso que, para mim, se perdeu na enxurrada de notícias de calamidade a que este país nos habitua. Só naquele momento me caiu tudo. O tamanho da perda. A ausência do tempo para cuidar. A forma como o país esquece as suas florestas até elas arderem.

Aquele pinhal foi pensado por reis. Lavrado com visão. Plantado com paciência. Madeira para caravelas. Sombra para o descanso. Floresta para o futuro. Hoje, precisamos de governantes que saibam lavrar. Não com enxadas, mas com consciência. Que entendam o tempo da terra. Que não vejam o país como um loteamento de interesses ou um palco de conferências.

Porque enquanto nos distraímos com slogans e metas, o território é ocupado. No Alentejo, está prestes a ser instalada uma mega central solar com quase seiscentos hectares de painéis, turbinas e baterias. Solo fértil transformado em infraestrutura industrial. Vi com os meus olhos o que isso representa em zonas como Campos e Campilhas. O que era paisagem viva torna-se paisagem vedada. O que era horizonte aberto fecha-se em nome de uma promessa verde. Mas que verde é este que mata antes de nascer?

Não se trata de ser contra a transição energética. Muito menos contra soluções sustentáveis. Mas há uma diferença entre transição e ocupação. Entre visão e pressa. Temos zonas industriais desativadas, edifícios abandonados, telhados esquecidos. Por que insistimos em apagar o que ainda vive para plantar o que apenas convém?

É difícil regressar a um mundo que não parou. Guerras continuam. A da Ucrânia. A da Palestina. As que ninguém menciona no Sudão, na Síria, no Congo. Reuniões no Alasca decidem futuros sem chão. E nós, que partimos e voltamos, aos países que nos acolhem ou às rotinas que nos prendem, trazemos connosco uma pergunta que se entranha. Onde nos agarrar. Onde habita ainda o sentido.

Talvez o que arde não sejam apenas florestas. Talvez estejam a arder também os princípios. As palavras. As decisões tomadas longe demais de quem sente.

Foi por isso que as palavras de um professor norte-americano, num Parlamento Europeu muitas vezes apático, ressoaram com força. No dia dezenove de fevereiro de dois mil e vinte e cinco, o economista e académico Jeffrey Sachs, conhecido pela sua crítica à hegemonia americana e pela sua visão de um mundo multipolar, fez um apelo direto: que a Europa encontre uma voz sua. Uma política externa sua. Um caminho de paz. E não de submissão.

No seu discurso, Sachs foi claro. Apontou o dedo à manipulação mediática, às narrativas únicas impostas por Washington e à incapacidade da Europa de decidir por si mesma. Relembrou que a guerra na Ucrânia não começou num vácuo. Que as provocações e omissões vêm de décadas. Que a paz exige escuta, negociação e coragem. Pediu o fim da dependência de estruturas como a NATO que, segundo ele, deixaram de proteger para passar a dominar.

Jeffrey Sachs não é novo nestas batalhas. Já criticou duramente o papel dos Estados Unidos em conflitos como o do Iraque, da Síria e agora da Ucrânia. Mas o que mais espantou foi o eco da sua intervenção. Não por ser disruptiva. Mas por ser clara. Por ousar pensar fora da linha. Por lembrar à Europa que ser aliada não é ser submissa. Que a dignidade política também se exerce.

Nesse dia, num Parlamento onde tantas vezes reinam tecnocratas, falou-se de alma. De soberania. De uma Europa sem correntes. E eu, do lado de cá do ecrã, senti um impulso que reconheço. O de quem não se conforma.

Num mundo em chamas, cada um procura como resistir. Já não sabemos bem o que fazer. Mas sabemos que não somos espetadores. Ou somos parte da solução ou somos cúmplices da destruição.

Que esta rentrée não seja apenas um regresso. Que seja um recomeço com olhos bem abertos. Porque o futuro decide-se também nas palavras que escolhemos repetir. Nos hectares que escolhemos abandonar. Ou cuidar. E nas alianças que temos coragem de romper. Ou de reinventar.

Que este texto vos inspire ou vos provoque. Não procuro concordância, mas romper as correntes da apatia.

Por Marisa Monteiro Borsboom

Marisa Borsboom / Correspondente no BENELUX
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