O adulto distingue-se da criança no modo como de um mundo, aparentemente preto e branco, passa a ver várias escalas de cinza pelo meio. Na maneira como deixa cair sonhos ou ideias nítidas para antes perceber que uma dose de pragmatismo e realismo é melhor que avanço nenhum. A vida adulta, mais do que deixar crenças ou princípios, pode ser na verdade uma oportunidade de negociar, estabelecer compromissos e mais do que ostentar o bom, quando possível, optar pelo menos mau quando este é o melhor caminho possível.
Quando nos tempos de faculdade me debatia com a dificuldade de fechar a minha monografia de curso, recordo-me de um amigo que, alicerçado numa vídeo-aula do psicólogo Jordan Peterson, comparou-me a Peter Pan. Segundo essa análise do personagem, talvez eu fosse alguém que não queria crescer e abandonar o único lugar que conhecia – a Terra do Nunca – e como tal, ficava paralisado em não acabar a monografia, pois depois desta, teria de escolher um novo objetivo e rumo a seguir. Por vezes, o desconforto é apenas mantido porque é a única coisa que podemos dar por certa, e o incerto é demasiado pesado para ser carregado. Por isso, Peter Pan tem amigos que são crianças ou uma fada, e a única referência adulta que tem é o Capitão Gancho, uma figura torpe que faz-nos ter aversão a tudo aquele que é adulto.
Referi-me a esta história porque ela é uma boa metáfora da sociedade infantilizada, comunidade que quer viver na Terra do Nunca das suas ideias, sem fazer concessões ao mundo real, e sobretudo sem reconhecer que há mais adultos para lá do Capitão Gancho. Essa sociedade alicerçada no ideal, nos princípios, na não negociação, na luta constante pela não mudança, é tão perigosa como as utopias totalitárias, porque recusa viver de outra forma que não a do Peter Pan. E antes que se pense que eu acho que temos de viver sem princípios, remato que não, mas que antes defendo outra coisa. Os princípios não são dogmas, são passíveis de críticas e na verdade são antes ferramentas que devemos usar para viver e construir pequenas sociedades. São pêndulos e, portanto, devem ser flexíveis e perenes a expetativas, idealizações e consequentes frustrações. E, sobretudo, não devem ser um obstáculo a lermos sobre ideias diferentes e a negociar com quem não os tem, até mesmo um inimigo. Os princípios não devem ser substituídos, mas nunca devem ser oposição à negociação e à diplomacia.
Desta maneira, num trabalho tão simples como o atendimento ao público, compete que a frustração dos anos não reduza o nosso compromisso, ou que até o perfil aguçado de algum cliente ou utente não seja uma razão para abdicarmos do nosso profissionalismo ou atenção. O mau trato nunca deve ser razão para a nossa frustração ou ressentimento, nem o cansaço pode ser um impedimento à nossa responsabilidade. Chega de vermos todos os que nos opõe como Capitães Gancho ou a sorte ou azar que o destino nos entrega como uma linha moral contra a nossa Terra do Nunca. Mantermo-nos na Terra do Nunca só nos levará a vitimização e a uma incapacidade inultrapassável de construirmos elos com adultos reais, inclusive piratas.
Na política, é exatamente a mesma coisa. Ela devido ao seu carácter quase religioso tornou-se num modus operandi da busca da satisfação de todos, da legitimidade moral coletiva e da busca incessante pelo voto do eleitor. A Terra do Nunca é viver num país em que não há medidas concretas para fazer face à desertificação climática que está a fazer desaparecer a água do Algarve e do Alentejo, e que ao invés se preocupa com o teatro de quem será o culpado shakespereano num eventual chumbo do orçamento. A Terra do Nunca é a bipolaridade vivida entre os religiosos do racismo estrutural e os clérigos da raça e a da cultura superior, quando provavelmente o problema reside numa distribuição mais homogénea da população e numa política mais ambiciosa de população, destruindo viés culturais inerentes à divisão por etnias (como tinha referido no artigo anterior). A Terra do Nunca é vivermos numa União Europeia que não funciona como federação e que é usada internamente nos seus países como arma de arremesso para eleições internas. Terra do Nunca é vivermos numa sociedade capitalista e que se diz liberal, que na verdade permite oligopólios e que se esquece que o princípio do livre mercado só pode ser defendido se existir iguais condições de transparência para os agentes económicos, coisa que os paraísos fiscais não permitem. Terra do Nunca é existir bipolaridade política onde não parece existir outras opções plurais, como uma terceira, quarta vias políticas, e que temos visto atualmente nos Estados Unidos e Brasil. Terra do Nunca é acharmos que o conflito Rússia-Ucrânia só se resolve com um simples cessar-fogo, ignorando o facto de a Rússia ser a herdeira da União Soviética da Guerra Fria, e que como tal mais que, disponibilizarmos armas aos ucranianos, também devíamos pensar numa estratégia conjunta de Defesa da União Europeia, bem como numa possível aproximação à China e a outras potências asiáticas, o que poderia isolar o ressurgimento do histórico imperialismo russo. Terra do Nunca é achar que a resolução dos conflitos do Médio Oriente são de resolução fácil, quando na verdade os territórios daquela região surgem de um Império Otomano já fraco nos inícios do século XX, e que os territórios daí resultantes após as duas Grandes Guerras, são na verdade não representantes de culturas e identidades únicas, mas de uma diversidade de povos e religiões que, para lá de não compatíveis, são na sua origem sociedades guerreiras tal como a eram as sociedades da Europa Primitiva e da Grécia Antiga. Terra do Nunca é ser contra a única nação democrática daquela região, comparando-a à Rússia. Terra do Nunca é por outro lado acreditar que o Ocidente deve defender integralmente Israel como o fazem os Estados Unidos, sem, no entanto, despachar um incompetente como Netanyahu ou fanáticos grupos nacionalistas que os sustentam. Ser infantil é defender uma Palestina que foi entregue, quer pelo Irão alicerçado no totalitarismo religioso, quer pelos senhores nacionalistas israelitas ao Hamas e ao Hezbollah, que expulsaram a autoridade palestiniana na primeira década deste século, e não perceber que a Palestina é um peão na Guerra Fria entre Irão, Israel e Arábia Saudita Terra do Nunca é substituir uma autoridade competente, embora ainda não liberal, pelo caos como aconteceu na Primavera Árabe.
Terra do Nunca é entregar a nossa vida a uma religião e política inflexíveis.
Crescer é ver que o mundo, a natureza em si é cruel, e que mais do que uma imagem curta, preta e branca de um pacisfista ou idealista, devemos ver a grande imagem dos conflitos e dos desafios.
Sair da Terra do Nunca é ser um estadista, alguém que tem coragem de tomar a opção menos má e de ter visão, não para o a agora, mas para o que virá, com coragem. E ser um eleitor deveria ser, abandonar o nosso corporativismo natural, a nossa noção de verdade, e procurar informação diariamente. Se o músculo só se desenvolve com ginásio, o cérebro só se desenvolve com letras, História, conhecimento e sobretudo crítica constante. Sair da Terra do Nunca não é abraçar a revolução, mas antes uma transformação constante e sobretudo consistente, lenta e medida passo a passo.
Em suma, convido-vos a sondar a que Terras do Nunca estamos ainda presos e, uma vez descobertas, desafio-vos a voar e a apontar para a construção da tua e nossa próprias Cidades-Estado.
Autor: Pedro Miguel Santos