Se a arte faz sonhar, o artista sonha mais alto. Tivemos o privilégio de entrevistar, em primeira mão, Nelson Ferreira, artista plástico que, à hora da nossa conversa, se encontrava em viagem, regressando do Camboja, onde passou um mês a pintar o templo de Angkor Wat. Antes disso, realizou o mesmo trabalho em Borobudur, na Indonésia — um templo com 1200 anos, sem registo de qualquer exposição de arte anterior. Foi, portanto, a primeira exposição oficial de pintura em toda a história daquele que é o maior templo budista do mundo. Uma verdadeira viagem no tempo, e foi feita por um português. A abertura da mostra foi apoteótica, ao estilo dos templos, e ocorreu durante um jantar no local, reunindo cerca de 150 convidados selecionados a dedo daquela região do globo.

Nelson Ferreira participou como Representante Cultural Emissário, uma espécie de embaixador da cultura do templo de Borobudur — o maior templo budista do mundo, património da UNESCO e também o mais visitado da Indonésia.
Situado no coração de Java, Borobudur recebe três milhões e meio de visitantes por ano. O monumento conta com mais de 2600 painéis narrativos esculpidos em baixo-relevo, que totalizam 5 km, é construído com cerca de 2 milhões de blocos de pedra e alberga mais de 500 estátuas de Buda. Para se ter uma noção, recebe sete vezes mais visitantes do que o Mosteiro da Batalha.
“Há um mês, realizei a primeira exposição de sempre na história do templo de Borobudur, que tem 1200 anos. Desde que há registo, nunca nenhuma exposição de arte foi feita lá. Esta foi a primeira exposição oficial de pintura em toda a história do templo.” — assinala Nelson Ferreira.
Visivelmente emocionado, acrescenta:
“Foi uma honra ser o primeiro artista a pintar um templo tão imponente e importante a nível internacional. E ser português deixou-me ainda mais feliz. Eu não represento apenas a mim: represento Portugal no estrangeiro. É um marco absolutamente histórico, porque Borobudur é um monumento à escala mundial, uma das maravilhas do mundo. O que me aconteceu depois de expor lá foi uma sensação de felicidade extrema, algo verdadeiramente extraordinário.”

“Nomearam-me representante deste templo em Angkor Wat, ou seja, fui para o Camboja representar o templo de Borobudur” — explica Nelson Ferreira.
No templo de Angkor Wat, no Camboja, “estive a fazer exatamente o mesmo: criar as minhas pinturas, tal como fiz em Borobudur. Usei a técnica PlatiGleam, uma pintura que só pode ser devidamente vista no escuro. São obras em que a imagem aparece e desaparece consoante o ângulo da luz” — acrescenta.
A chuva, tanto no Camboja como na Indonésia, dificultou o trabalho do artista, mas nem isso o demoveu. A exposição realizou-se mesmo assim, com algumas pinturas ainda molhadas, mas, como se diz na gíria anglófona, the show must go on.
“Estive a pintar três templos na Indonésia: Borobudur, o maior templo budista do mundo; Prambanan, também património da humanidade e o segundo maior templo hindu fora da Índia; e, finalmente, Sewu, o meu preferido” — relata.
Sobre Sewu, sublinha que “para mim, tem uma carga mística mais intensa”. Durante um mês, Nelson pintou estes templos à noite, especialmente iluminados por uma equipa contratada pelo ministério da cultura indonésio, para tornar possível o seu trabalho durante a noite.
Quanto tempo demorou a pintar cada templo?
Esteve a pintar durante sete noites em cada templo, ao longo de um mês. Foi o primeiro e único artista, em toda a história destes monumentos, a concretizar tal feito. O processo foi documentado pelo cineasta Yuri Chernikov que, depois de ter filmado Nelson no Mosteiro da Batalha em 2023, voou agora de propósito de Portugal para registar esses momentos na Indonésia. Tratou-se de obras noturnas, de carácter inédito, que contaram com o apoio técnico do governo indonésio — um apoio que, segundo o artista, nunca teria recebido em Portugal ou na Europa. Foram mesmo mobilizadas equipas especializadas de iluminação, dignas de um filme de Hollywood, para valorizar os templos e tornar possível pintá-los à noite.
“O mundo está a mudar”, afirma o pintor. “Quando começamos a viajar, apercebemo-nos de que as coisas estão realmente a mudar — o que é fenomenal. É como se, por exemplo, iluminassem o Mosteiro dos Jerónimos de propósito, apenas para que um pintor pudesse trabalhar nesse monumento à noite!” — sublinha Nelson Ferreira.
Como é que foi a experiência de pintar esses três monumentos?
“Foi uma experiência muito profunda, desde logo porque estávamos na Indonésia. Recebi um apoio logístico que nunca senti na Europa, nunca senti no Ocidente: desde hotel, motoristas e toda a estrutura necessária. Sempre que estava a pintar, tinha comigo uma equipa de cinco ou seis pessoas, sempre prontas a ajudar no que fosse preciso. Documentaristas, fotógrafos, operadores de câmara — tudo preparado para criar depois um documentário e uma campanha nas redes sociais. Os nossos museus nacionais, comparados com o que vi na Indonésia, parecem muito frágeis. Em Portugal, temos de lidar com essa fragilidade. Só para dar um exemplo.” — exemplifica o autor.
“O que eles publicavam nas redes sociais rapidamente passava das 100 mil visualizações. As coisas tornam-se virais na Indonésia porque as equipas que gerem os monumentos são especialistas e contam também com profissionais dedicados ao marketing e às redes sociais.”
O artista comenta ainda:
“Durante o processo criativo, há toda uma série de fantasmas com que temos de lidar e que vêm de nós próprios. Toda a obra de arte passa por várias fases: primeiro, a fase do sonho, em que tudo é possível. Depois surge a fase da dúvida, em que parece que tudo vai correr mal — e é geralmente aqui que a maioria das pessoas desiste. Finalmente, vem a fase da execução final, em que entra essencialmente a técnica e o conhecimento que só vem da experiência e do estudo profundo. Confiamos que, se o processo for bem feito, o resultado será espetacular. E foi isso que aconteceu. Pintei até ao último minuto. No próprio dia da exposição, ainda estava a trabalhar nas telas, que continuavam húmidas. Tinha acabado de repintar grandes áreas para as tornar mais especiais. E como o clima da Indonésia é extremamente húmido, o que em Portugal seca em cinco minutos, lá demorava oito horas e mesmo assim ainda não estava seco. As pinturas foram expostas assim, ainda molhadas. Foi a primeira vez que fiz uma exposição com as telas todas por secar.”
Foi um momento absolutamente histórico: a abertura da exposição contou com dança tradicional e orquestra de gamelão — conjuntos de instrumentos gigantes que precisam de ser transportados em camiões devido ao seu tamanho.
Nelson Ferreira pensava que a mostra iria acontecer discretamente, “num cantinho ao lado do templo, nada de especial. E pensei para mim que já seria bonito”. Quando passou por lá à tarde, não havia nada montado. Uma hora antes da abertura, deparou-se com um cenário transformado: centenas de flores, plantas e vasos foram trazidos para criar um jardim monumental.
Durante o evento, serviu-se uma refeição para 150 convidados especiais, escolhidos a dedo, e cozinhadas pelo chefe Vicky Putra. Vieram bailarinas de Java, do Avadana Dance Studio, apresentando danças tradicionais inspiradas nos frisos de Borobudur.
Quando a exposição abriu, fê-lo no monumento mais importante da Indonésia: Borobudur, património mundial e o local mais visitado do país, verdadeiro símbolo nacional em termos de monumentos. A abertura foi excecional: acenderam a iluminação do templo — algo que nunca acontece, a não ser em cerimónias religiosas. À noite, Borobudur permanece sempre às escuras. Mas, para a exposição, abriram-se as luzes. Televisões, rádios e jornais indonésios estavam presentes para registar o momento.
Para Portugal, é também uma ocasião de reflexão. Ser o único pintor português escolhido para uma iniciativa desta dimensão é uma mudança de paradigma: nunca ninguém tinha sido convidado a fazê-lo. Foi a primeira vez em 1200 anos que tal aconteceu. “A diretora do templo de Borobudur viu a minha pintura permanente no Mosteiro da Batalha, graças ao ex-diretor Joaquim Ruivo. E foi daí que surgiu o convite para pintar o templo de Borobudur. Eu pedi para pintar também o templo de Sewu. Então o Ministério da Cultura da Indonésia, através da equipa Injourney Destination, sugeriu que eu pintasse estes três templos: Borobudur, Prambanan e Sewu, todos na Indonésia, em Java” — explica Nelson Ferreira.
Qual foi a sensação desta experiência?
“A verdadeira sensação vai ser daqui a três semanas, e passo a explicar. Fui enviado para fazer a primeira residência artística de toda a história do templo de Angkor Wat, no Camboja — a maior estrutura religiosa do mundo em área, com 160 hectares. Não existe nenhum templo no mundo tão vasto. O segundo maior é o templo de Karnak, em Luxor, no Egito, com pouco mais de cem hectares. Mas o maior é Angkor Wat, com 160 hectares. É um templo solar, alinhado com o equinócio.
Estive a pintá-lo durante sete nasceres do sol. Como é um templo solar, decidi usar a técnica PlatiGleam pela primeira vez à luz do dia. Normalmente, esta técnica só pode ser aplicada à noite, porque a luz diurna é demasiado intensa e impede que se perceba bem o efeito. Mas arrisquei: criei um tríptico do templo de Angkor Wat ao amanhecer, com a luz da madrugada. Foram sete nasceres do sol. Devido às chuvas, o processo prolongou-se quase um mês até conseguir reunir os sete momentos em que não chovia.
Agora, essas pinturas vão integrar a coleção permanente do templo de Borobudur, juntamente com os três trípticos que tinha pintado na Indonésia. O museu do templo de Borobudur construiu de propósito uma sala destinada às minhas obras — um espaço de nove metros por seis. Por isso digo: o mundo está a mudar muito depressa. É fundamental que os artistas ocidentais compreendam que uma carreira de sucesso não é só na Europa. Temos de estar abertos às oportunidades que surgem de lugares inesperados.” — refere o artista.
A nova sala será totalmente pintada de preto no interior, para que as pinturas PlatiGleam possam ser apreciadas no escuro, como deve ser. “Vou agora regressar à Indonésia para abrir a segunda parte da exposição Nyawiji (A União). E deixo aqui um convite a todos os leitores do Jornal Comunidades Lusófonas: quando passarem pela Indonésia, visitem Borobudur, vão ao museu, e vejam as minhas pinturas PlatiGleam.” — apela Nelson Ferreira.
Uma Mensagem aos artistas
“A mensagem da minha experiência é que estão a emergir países que estão a dar autênticas lições ao Ocidente. Sinto que temos muito a aprender, por exemplo, com o Sudeste Asiático, não apenas a nível pessoal, porque as pessoas são notoriamente mais felizes do que no Ocidente. Não há comparação: os indonésios são mais alegres, mais brincalhões, mais sorridentes e, além disso, mais pacientes.” — conclui o artista plástico português, em tom profundamente sentido.



