26 outubro 2025

A casa mais famosa do mundo está em obras, cada vez menos branca com o pó da derrocada das paredes em reestruturação.
E antes que os trabalhos começassem, ouviu-se do lado de fora um protesto com cartazes a dizer “No Kings”. Um grito contra o poder absoluto, simbólico e real, no coração da democracia mais observada do planeta. O protesto antecedeu as obras, como se a própria sociedade americana pressentisse que o restauro não se fazia apenas em betão, mas também em consciência. A Casa Branca fecha alas para manutenção, enquanto o mundo, lá fora, continua a desabar.
Em Gaza, a poeira cobre a esperança. As ruínas são o quotidiano e as crianças aprendem a fome, a ruína e as lágrimas.
Na Ucrânia, o frio regressa e com ele o eco da resistência. Durante a sua passagem por Bruxelas, o presidente Volodymyr Zelensky afirmou, ao lado de António Costa, agora Presidente do Conselho Europeu, que não cederá território à Rússia. As palavras, firmes e necessárias, contrastam com a exaustão de um povo que resiste há anos e paga o preço da sua dignidade com vidas. Ele próprio, exausto e desgastado, mas devoto a um ideal que transformou a sua vida.
E há quem, do outro lado do Atlântico, reduza a tragédia a uma metáfora de salão. Donald Trump disse que é preciso dois para o tango, como se isto fosse um baile querido e não uma dança forçada, marcada por sirenes, deportações e cemitérios abertos. Não há tango em Bucha nem em Mariupol. Há sobrevivência. E a sobrevivência não dança, arrasta-se.
Na Irlanda, país de emigrantes e poetas, a dor transforma-se em fúria. Dublin ardeu em protestos anti-imigração, numa ironia brutal. O povo que um dia partiu aos milhões para escapar à fome e à opressão ergue agora muros contra quem procura o mesmo refúgio. É o espelho mais cruel do esquecimento, o que nos faz negar no outro aquilo que já fomos.
Mas mais do que isso, foi um crime que serviu de rastilho. Mais uma desculpa, porque crimes há-os todos os dias. Pessoas são assassinadas, mulheres violadas, crianças abusadas. Todos os dias. Mas o que se vai calando acaba por encontrar uma oportunidade para explodir. Não se fala contra a emigração, mas contra uma certa emigração, e é também esse o diálogo que a população espera. Tratar de forma diferente o que é diferente é, em si, pugnar pela justiça. Mas crimes são crimes e devem ser tratados como tal, aos olhos abertos da lei.
Portugal despede-se de Francisco Pinto Balsemão, homem de palavra rara, patriarca de uma geração que acreditava que o jornalismo era serviço público e não espetáculo. Com ele parte uma ideia de imprensa que não cedia ao ruído e uma ética que hoje parece tão frágil como a verdade nas redes sociais. Balsemão foi, em vida, uma ponte entre a liberdade conquistada e a responsabilidade de a sustentar. A sua ausência deixa-nos a pergunta: quem constrói agora as pontes que o ódio insiste em destruir? Aos seus fica um legado maior e a certeza de que o privilégio que herdaram os obriga a levar esse legado mais longe, como a todos nós, que ficamos mais ricos por nos terem alargado os horizontes.
Mas nem tudo são ruínas.
O Papa Leão reuniu-se esta semana com o Rei Carlos III num gesto que marca um novo capítulo no diálogo entre Roma e Londres. Já antes, o Papa Francisco e o próprio Rei haviam protagonizado um encontro histórico, quebrando séculos de distância espiritual. Agora, sob a bênção de um novo pontificado, a oração conjunta de Leão e Carlos parece consolidar essa ponte entre fé e coroa, mostrando que o tempo pode curar até as feridas abertas por um rei que dividiu a Igreja por vaidade. Há, nesta imagem, uma reedificação que transcende o altar: é a lembrança de que também o orgulho precisa de restauração.
Entretanto, os líderes do mundo preparam mais uma cimeira. Há sempre uma nova cimeira no horizonte, novos discursos, novas promessas. Mas a sensação é de déjà vu, o planeta a desmoronar-se e as elites a trocar palavras polidas enquanto a urgência bate à porta. Talvez o que falte não sejam mesas redondas, mas espelhos verticais, capazes de devolver a cada líder o reflexo da própria inação. E um lembrete a todos nós de que não é deles que dependemos, mas da soma de todos nós.
Em Riade, o futuro discutiu-se no silêncio dos nichos, em torno dos especialistas em cibersegurança. É ali que se decide a nova geopolítica invisível. As guerras já não precisam de exércitos, bastam cliques. O poder deslocou-se para o código e a soberania tornou-se uma senha.
No deserto, fala-se de segurança digital, mas o que está em risco é, mais uma vez, o humano, cada vez mais acorrentado por um digital que nos é imposto como se fosse ar para respirar, num mundo que continua a ser analógico e biológico.
Há obras na Casa Branca, sim. Mas as que o mundo mais precisa continuam por fazer: as obras interiores, as da expansão da consciência coletiva, da compaixão entre humanos e entre todas as formas de vida, e do restauro do compromisso com a procura da verdade.
E talvez devêssemos todos, por um tempo, fechar para obras, não por fora, mas por dentro.
Que este texto vos inspire ou vos provoque. Não procuro concordância, mas romper as correntes da apatia.
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Por Marisa Monteiro Borsboom



