Mário Gama, patriarca da música angolana, assume que tem dois amores como na canção de Marco Paulo: Angola e Portugal. Nesta conversa, que teve lugar no Palácio de Cristal, no Porto, cidade onde vive parte do ano, defende a necessidade das novas gerações se formarem artisticamente, e da Lusofonia ser mais estimulada a nível local.

Jornal Comunidades Lusófonas – A primeira pergunta que lhe gostaria de fazer é a mais simples e mais complexa, tendo em conta a sua vasta atividade artística e profissional.
Quem é Mário Gama ? Como se define ?
Mário Gama – Nasci numa família humilde, o meu pai era funcionário público, tinha a quarta classe, mas era um homem excecional, com uma grande cultura e curiosidade intelectual, foi seminarista, com fortes ligações aos irmãos franciscanos, a minha mãe também era uma mulher com preocupações culturais. Éramos 9 irmãos e morávamos na Samba, mais tarde aos 4 anos de idade mudámo-nos para a praia do Marçal, e aos 13 anos, fomos morar para o Bairro popular de S. Paulo e em 1968, já na juventude, fui mobilizado para a força aérea portuguesa para a base aérea da Ota.
Em Portugal desenvolvi a minha atividade na força aérea e, paralelamente, a minha vida musical, conheci muitos artistas portugueses, cantei e fiz amizades com vários criadores portugueses, nesses anos.
JCL – É autor de uma das mais emblemática canções angolanas “Presidente”, que homenageia Agostinho Neto. Como foi o processo de criação desta música?
MG – A ideia desta música surgiu no âmbito da operação Nó Górdio comandada pelo Coronel Kaúlza de Arriaga, em 1971, na qual participei, e tive a ideia de enaltecer a figura de Agostinho Neto, quando estava abrigado nos bunkers dos bombardeamentos da Frelimo, em Moçambique . Ela é inspirada numa música popular cubana do século XIX que, em 1958, Carlos Puebla adaptou para compor a canção “ Hasta sempre, comandante”, e celebrar Che Guevara.
JCL – Teve um contacto intenso com o meio musical português. Pode falar-nos dessa conexão?
MG – Estudei Belas Artes em Angola e vim para a Escola António Arroio em Lisboa, dar continuidade aos estudos e, como tinha uma irmã, Ângela da Gama, que foi a primeira negra e não conimbricense a ser Diretora da Biblioteca Municipal de Coimbra, conheci muito bem Manuel Freire, Zeca Afonso, José Fanhais ou Adriano Correia de Oliveira, e participei, por exemplo, no movimento de contestação ao Presidente Américo Tomás, coloquei sabão na rua enquanto a comitiva passava pela cidade.
O meu primeiro Disco foi gravado com o maestro Pedro Osório. A nível internacional destaco, entre outras parcerias, que convivi com o norte-americano Percy Sledge, e gravei um CD com o cantor cubano Pablo Milanês.
JCL– Que conselho daria a um jovem criador, angolano, português ou de outro país lusófono para ser bem sucedido, no meio artístico ?
MG – Dir-lhe-ia que não pode apenas guiar-se pelo empirismo. Tem de estudar, formar-se, ter Escola, frequentar os Conservatórios. É importante que goste das múltiplas artes e, se possível, que as experimente – eu, por exemplo, além da música, também pintei ao longo da minha vida.
JCL – Paralelamente aos altos voos artísticos, também tem uma forte ligação profissional à força aérea portuguesa?
MG – Em 1968, fui mobilizado para Portugal, para o regime número 2 da base aérea da Ota: era o único negro angolano num total de 600 militares, foi um período de formação e mantemos laços até hoje, reunimo-nos e convivemos quando estou em Portugal. Mais tarde, integrei às forças aéreas angolanas, e ajudei a formar as novas gerações de pilotos angolanos.
JCL– Por último: como poderia ser mais estimulada a Lusofonia?
MG– Eu acho que a Lusofonia não pode cingir-se aos Estados Centrais. As autarquias, os poderes locais como espaços de liberdade, podem desempenhar um papel crucial, estabelecendo novas parcerias entre si.
Rui Marques



